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XXIII

Quer a faca caia no melão ou o melão na faca, o melão sofrerá

(chinês)

Carros de Guerra

Os carros de guerra murmuram e matraqueiam

Os cavalos fremem, relincham

Os soldados partem em expedições, arcos e flechas presos ao corpo

Pais, mães, mulheres e crianças correm atrás deles para se despedirem

Na poeira ficou para trás a ponte ao sul de Chabgan

Eles puxam-lhes as roupas, gemem e barram-lhes o caminho

Os seus prantos sobem até às nuvens

Deixar nascer um filho é pura infelicidade

Melhor uma filha

Uma filha pode casar-se com o vizinho do lado

Um filho acaba morto, insepulto, no meio do mato

Senhor, por acaso viu as margens do Oceano azul

Onde, desde tempos antigos, há ossos brancos que ninguém recolhe?

Novas almas se exasperam, velhas almas choram

Debaixo desse céu encoberto, a chuva molha seus gemidos e lamentos144.

(Du Fu)

Começara o quarto da modorra, nessa noite quente de Julho, quando soaram os tiros de aviso, os repiques dos sinos e gongos dos templos, trazendo toda a gente para as ruas. Os sinais de fumo e fogo que se erguem ao céu, em duas torres da muralha, não deixam lugar a dúvidas: os tártaros correm ao assalto da muralha para entrarem em Quansy.

– Vêm da parte donde sopra o vento! Já se lhes sente o fedor do sangue!

– São carniceiros. Não deixam ninguém com vida.

Todos conheciam histórias das suas razias nos lugares fronteiriços que acometiam, há muitos anos. O terror do flagelo que os espera, se o inimigo conseguir penetrar na cidade, parece ensandecer de terror a população e nem a presença do exército que acorrera à muralha ou a formação de cavalaria que se fazia prestes, conseguem sossegá-los. Em todas as casas se ouvem gritos e prantos, pelas ruas corre uma multidão desatinada, alguns quase nus, sem nada levarem de seu, outros carregados com os seus haveres.

– Não há esconderijo seguro! São como furões a caçar coelhos nas luras.

– Livrai-vos das espadas e arcos, se os tendes, porque não lhes podeis fazer frente e tereis morte certa se eles acharem armas em vossas casas.

– Pior é o que fazem às mulheres! Antes lançar-me com as minhas filhas do alto da muralha.

Os degredados portugueses, sem saberem o que fazer, acorrem a pedir conselho a Calvo. A casa está em alvoroço. Meng e Lijie sorriem por entre lágrimas aos noivos, mas a mãe impede-as de irem ao seu encontro, ordenando-lhes que continuem com as suas tarefas.

– O exército tártaro é fortíssimo, disseram-me que são cerca de setenta mil cavaleiros – diz-lhes Calvo, sem disfarçar o receio, parecendo contrariado pela presença dos seus compatriotas. – Não há muralhas que os possam deter e os chins não são adversários à sua altura.

– Que havemos de fazer? – pergunta Borralho, olhando ansioso para Lijie que não cessa de chorar.

Calvo tem lágrimas nos olhos e não responde. Fernão sente o medo a gelar-lhe o sangue.

– Se, como dizeis, eles vão entrar na cidade, tratemos de pôr a vossa esposa e filhos em lugar seguro, quanto antes. Mesmo que não logreis salvar a casa e os bens.

– Os tártaros já estão no pinhal, a légua e meia da cidade! – grita Calvo, de rosto descomposto. – Dentro de duas horas estarão às nossas portas.

As moças redobram o pranto, que se junta ao dos meninos. Os degredados parecem ter perdido o siso, tartameleando, incapazes de falar a propósito.

– Que faremos então? – repete Borralho.

– Por que meio nos poderemos salvar? – pergunta Vicente, o único que mantém o semblante sereno, a voz sossegada.

Calvo olha-os, a todos, como surpreendido de ainda os ver ali, respondendo muito agastado:

– O meio que eu agora, meus irmãos, achava mais certo de nossa salvação, era acharmo-nos entre Lavra e Coruche, ao pé de uma moita, onde me eu já vi muitas vezes. Mas já que não pode isto ser, encomendemo-nos a Deus Nosso Senhor para que nos valha.

Fernão percebe que aquele homem corajoso, veterano de tantas batalhas, só lhes fala assim por estar aterrorizado, não por si, mas pelo que poderá suceder à mulher e aos filhos.

– Temos de sair da cidade, quanto antes, por uma das portas opostas ao arraial dos tártaros – diz-lhe, tentando arrancá-lo ao desespero, embora também ele sinta arrepios de medo por todo o corpo.

– Ajudaremos a carrear o vosso fato – oferece Vicente e os companheiros acenam em concordância –, levaremos o que quiserdes, pois tudo o que temos é o que trazemos no corpo.

Calvo grita-lhes, fora de si:

– Estais porventura cegos, para não verdes o que se está a passar? Há menos de uma hora oferecia eu mil taéis de prata a quem me pusesse em salvo, com a minha mulher e filhos, mas não houve remédio por já todas as portas da cidade estarem fechadas e muito bem guardadas. Isto agora é cada um por si, o salve-se quem puder. Tratai de buscar refúgio onde puderdes, que eu farei o mesmo junto dos parentes da minha esposa. Permita Deus que nos volvamos a encontrar e, se for de Sua vontade, talvez possamos retomar as nossas vidas no ponto em que as deixámos.

Fernão e Cristóvão têm apenas um breve instante para se despedirem das duas moças, cujo choro lhes corta o coração. Na rua, vendo o desatino da multidão, param sem saber para onde ir.

– Que faremos? – é a pergunta em todas as bocas. – Para onde iremos?

– Creio que nos devíamos refugiar no cárcere da muralha. – sugere Fernão, cujo instinto de sobrevivência se sobrepõe a todos os outros sentimentos em situações de perigo.

– No tronco? Ensandeceste?

– Por que razão queres ficar preso?

– Pacientai um pouco e ouvi-me. Na minha primeira viagem ao mar Roxo, fui feito prisioneiro dos turcos, posto a leilão com mais seis companheiros na praça da cidade de Mocaa. Quis Deus que naquele momento estalasse uma disputa entre os soldados e os clérigos pelos direitos da nossa venda, a qual descambou em sangrenta batalha. Quando os vimos a matarem-se uns aos outros pela cidade, nós os sete, que déramos causa à contenda, tomámos por remédio mais certo da nossa salvação tornarmo-nos a meter na masmorra, sem que nenhum ministro da justiça nos levasse. Assim salvámos a vida, porque houve mais de seiscentos mortos de ambos os lados, depois de pilhada meia cidade.

– Não foi mal pensado, não senhor! – exclama Vicente, rompendo o silêncio pasmado dos companheiros. – Se os tártaros invadirem Quansy, será para a saquearem e vão passar toda a gente a fio de espada para depois incendiarem a cidade. No tronco devem estar, como sempre acontece, alguns prisioneiros da sua nação, à espera de serem levados para outras províncias, os compatriotas hão-de ir lá libertá-los. Ora, sendo nós estrangeiros condenados pelos chins, não nos farão dano.

– Se, por outro lado, forem os chins os vencedores – acrescenta Zeimoto – nada de mal nos sucederá, por já não termos a obrigação do cárcere. Poderemos dizer que viemos ajudar na defesa.

– Se não tendes outra ideia melhor, sigamos quanto antes para a prisão, que já se ouvem as bombardas na muralha.

Os tártaros não vinham fazer uma razia num povoado fronteiriço, vinham preparados para conquistar uma cidade muito maior que Quansy, talvez mesmo a própria Pequim, para levarem aquilo que não tinham podido obter por honesto trato: arroz, cereais e panos. Agora, à escala franca, tomariam o que lhes apetecesse ou pudessem transportar nas selas dos seus cavalos sem os atrapalhar em combate, como jóias, ouro e prata.

Eram medonhos de aspecto, cabelos avermelhados, sem barba, tirante alguns pêlos no lábio e no queixo, tão raros que se poderiam contar, de olhos estreitos e vivos, a voz áspera e aguda; o som dos seus passos e o tilintar das setas nas aljavas faziam estarrecer as suas vítimas, que nem tentavam defender-se. Cada guerreiro trazia até dezoito cavalos para ter sempre montada folgada, pronta para as correrias e refregas, mas o seu fato era leve, composto por dois odres de kimiz, o leite de jumenta que preparavam como vinho, umas tiras de carne seca e um pote para cozer a carne. Insensíveis ao cansaço, ao frio ou à fome, podiam passar dois dias e duas noites a cavalo, sem porem o pé em terra, alimentando-se apenas de kimiz ou, na falta dele, sangravam um cavalo, picando-lhe uma veia para lhe beberem o sangue.