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Tinham pólvora, máquinas de guerra que catapultavam pelouros de pedra, de ferro e de fogo contra as torres da muralha, duas das quais desabaram em pouco tempo. Indiferentes às setas e panelas de pólvora que lhes lançavam de cima, os soldados entulhavam o fosso junto da muralha com sacos de terra, madeira e feixes de arbustos secos, enquanto outros arvoravam as escadas, subindo por elas como se não temessem a morte, saltando sobre os defensores que, não sendo gente acostumada à guerra como eles, pouca resistência ofereciam.

Os vaivéns de vigas ferradas não tardaram a rebentar as portas e a horda entrou na cidade com o furor dos cavaleiros do apocalipse, matando e destruindo tudo à sua passagem. Com os cabelos ao vento, protegidos por couraças feitas de pedaços de couro duro, armados de arcos e espadas, lanças ou maças, eram cavaleiros formidáveis, cujos cavalos pareciam obedecer-lhes ao pensamento.

O chaem que condenara os portugueses a perpétuo degredo, assim como o monteo Liu Xugang morreram a defender-lhes a entrada, juntamente com outra gente nobre. O maior troço do exército chim protegera, durante algum tempo, a zona mais rica da cidade onde se erguiam as casas dos lauteaas, os edifícios do governo, os seus armazéns de mercadorias, os celeiros, a casa da prata. Entrincheiraram-se à espera da horda que caiu sobre eles como uma praga de gafanhotos.

Galopavam em círculo, ora avançando, ora recuando, disparando os arcos que não falhavam os alvos, indiferentes às setas dos adversários e às suas próprias perdas. Subitamente, pareceram ceder, fugindo desordenados. A infantaria chim cerrou fileiras e a cavalaria, soltando um brado vitorioso, lançou-se atrás deles, seguida pelos peões em correria. Só perceberam o erro demasiado tarde. Os tártaros, simulando a fuga, tinham-nos conduzido a uma cilada, atraindo-os a um lugar mais amplo e exposto, onde se reagruparam num ápice, carregando como um só corpo sobre os perseguidores, dizimando-os.

Alguns mandarins favoreceram os assaltantes, conseguindo salvar a vida com parte dos seus bens. Outros preferiram a morte à vergonha e famílias inteiras lançaram-se do alto da muralha, para não verem os filhos reduzidos à escravatura, as filhas violadas à vista de todos ou, as mais moças e formosas, levadas para escravas e concubinas.

Os moradores que deitaram fogo às casas, para subtrair o espólio aos inimigos, desencadearam a sua ira e os bárbaros das estepes percorreram as ruas a cavalo, de espada desembainhada, com o prazer selvagem de quem participa numa orgia, massacrando todos os homens, mulheres ou crianças que lhes ficavam ao alcance das lâminas; de passagem, arrancavam os infantes de colo dos braços das mães, lançando-os contra os muros e as pedras das ruas. O sangue corria, secando nas paredes e nas calçadas em manchas escuras como ferrugem.

Durante sete dias, vasculharam as casas queimadas ou abandonadas, à procura de ouro, prata e jóias, sujeitando os sobreviventes aos tratos mais cruéis para os obrigarem a revelar os esconderijos dos seus tesouros, destruindo toda a outra fazenda que não podiam levar, para que os seus donos, se tivessem conseguido fugir, ao voltarem para a recuperar, não achassem uma só peça de pano ou de porcelana inteira. Pilharam e destruíram os templos, os mosteiros, matando os monges e as monjas, poupando a vida apenas às mais moças que levavam cativas.

No tronco, todos os presos, incluindo os chins, tinham vivido com grande alvoroço a odisseia da cidade, de que lhes chegavam poucas notícias, tentando perceber o que se estava a passar lá fora. Ao fim do dia, vendo desaparecer os guardas com os carcereiros, souberam quem fora vencido e saudaram a vitória dos assaltantes pela esperança de serem postos em liberdade.

Quando um bando de vinte guerreiros tártaros irrompeu no tronco, foi recebido com grandes festas e muitos brados de alegria. Os libertadores passaram revista aos presos, soltando logo os quinze compatriotas que ali acharam, abraçando-os com muita efusão; os condenados chins não tiveram a mesma sorte, sendo os mais moços levados como cativos e os mais fracos passados à espada. Quanto aos folangji, que deixaram os invasores mudos de surpresa, esperava-os outro destino: só o Mitaquer, nauticor de Lançame, o general que comandava o exército, poderia decidir da sua sorte.

Senhores da cidade, os demónios vermelhos ocuparam-se dos seus mortos, erguendo piras de madeira onde os queimaram, sendo os chefes enterrados com as maiores honras. Os cativos abriram covas largas e fundas onde os corpos foram depositados com as suas couraças, as armas e jóias de ouro ou prata; enterraram junto a cada um deles alguns cativos, homens e mulheres, para os servirem na outra vida, assim como os seus cavalos preferidos, para poderem prosseguir com os seus combates.

Partiram após sete dias de saque e destruição, soltando brados e canções vitoriosas para humilharem os vencidos.

– Os chins são infantes e nós somos cavaleiros. Que pode fazer uma manada de potros, de vitelas contra tigres ou uma alcateia de lobos?

Apesar das baixas sofridas no assalto, o exército parecia ter dobrado de tamanho, acrescido dos milhares de cativos – homens, mulheres e crianças que seguiam como um rebanho os seus senhores –, dos muitos cavalos e gado tomados no saque; carroças carregadas de cereais, panos e porcelanas fechavam o cortejo.

Atrás deles, colunas de fumo negro erguiam-se no ar, como estandartes de luto por uma cidade abrasada, onde nenhuma casa, edifício ou templo sumptuoso permanecia de pé e os corpos dos vencidos apodreciam por toda a parte, insepultos.

144 A partir da tradução de Sérgio Capparelli. Du Fu (712-770) foi um poeta chinês da dinastia Tang.

XXIV

Jamais desesperes nas mais sombrias aflições da tua vida, pois das nuvens mais negras cai uma água limpa e fecundante

(chinês)

As lutas do ano passado

Os bárbaros não semeiam os campos,

o massacre é para eles

o que o plantio é para nós.

Desde os tempos mais recuados

há ossos brancos empilhados

na areia amarela.

Lá, onde os Qin construíram a Grande Muralha

contra os invasores

os filhos dos Han acendem tochas,

que servem de aviso.

Até hoje, nunca acabaram as pelejas.

No campo de batalha os homens cruzam o ferro

num corpo a corpo, sem clemência.

Os cavalos relincham suplicando ao céu

os corvos e os abutres de bicos resistentes

laceram as entranhas humanas

depois voam e deixam-nas penduradas

em árvores secas.

O sangue dos combatentes escurece na relva

e contra isso os generais nada podem fazer.

Lembrem-se, então, que as armas

são os instrumentos do mal

e deveriam ser apenas

o último recurso do homem sábio145.

(Li Bai)

Os tártaros montaram o arraial e fizeram trincheiras à volta do castelo de Nixiamcoo, a dois dias de caminho de Quansy, porque o nauticor de Lançame tinha contas a ajustar com os seus moradores, que na ida lhe haviam armado uma cilada, matando-lhe uma centena de homens146. No entanto, apesar da superioridade numérica do seu exército, da qualidade e experiência dos seus guerreiros e das centenas de escadas que mandara fazer para o assalto, o nauticor não tinha sido bem sucedido, pois em apenas duas horas de combate perdera mais gente do que na investida a Quansy; raivando de humilhação, fora forçado a ordenar a retirada, para cuidar dos feridos e enterrar os mortos.

Por todo o campo correram murmurações de que aquela empresa, de tão pouco proveito com tão alto custo em vidas, era fruto de um capricho do nauticor e não do serviço de Altan Khan, o seu rei. Os capitães, preocupados com os sons de revolta, não quiseram arcar sozinhos com os custos de acometer de novo o castelo e pediram ao nauticor que submetesse a decisão a conselho geral, como determinava o regimento que lhe dera o khan.