O general convocou logo os nobres e oficiais ao campo das tendas onde, sem desmontar do seu cavalo, lhes apresentou as razões para o combate. Os pareceres a favor ou contra foram tantos e tão variados, que a noite chegou sem que se pusessem de acordo, sendo marcada nova reunião para o dia seguinte.
O capitão Tileymay, que tinha a custódia dos folangji, viera sentar-se com três outros oficiais, junto da fogueira que ardia diante da sua tenda, a beber e a praticar sobre o que se passara no conselho. À distância de alguns passos, estava o cercado dos cativos estrangeiros, de modo que se podiam ver e ouvir uns aos outros sem dificuldade. Como as distracções eram poucas, a ansiedade muita e a fome ainda maior, os portugueses espiavam os quatro tártaros, como se estivessem a assistir a um entremez num pátio de comédias.
O capitão mandara vir um odre de kimiz, deitara um pouco numa escudela e lançara-o para o alto, como se o oferecesse aos céus, em seguida, repetira o gesto nas quatro direcções – oriente, ocidente, norte e sul –, depois bebera um trago e só então oferecera a bebida aos seus convidados.
– Deve ser para lhes certificar que o vinho não tem peçonha – observa Zeimoto.
– Quem me dera um trago – geme Jorge. – Estou seco que nem palha de enxerga.
– Beber leite azedo de burra? – reponta Pereira, com uma careta de asco. – Só se estivesse pra morrer de sede.
– O que te há-de acontecer – corta Vicente –, se esse cabrão vermelho continuar por muito mais tempo sem nos dar de beber ou de comer!
Cristóvão e Fernão não falam, alheados do que os rodeia, com os sentidos postos no lugar de onde vêm sons de festa, misturados com prantos e gritos de mulheres. Os vencedores divertem-se com as cativas, muitas delas moças virgens, filhas de gente nobre, que eles têm prazer em torturar e humilhar. Os dois amigos vivem num tormento, ora acalentando a esperança da salvação de Meng e Lijie, ora imaginando-as mortas ou, pior ainda, a sofrerem as sevícias dos bárbaros, nas orgias que têm lugar todas as noites no arraial.
Depois de os ter retirado da prisão, Tileymay mandara pôr-lhes correntes nos pés e pescoço, mantendo-os sempre separados dos outros prisioneiros, de modo que não tinham podido perguntar se alguém sabia do paradeiro de Calvo e da sua família ou tinha visto as duas moças entre as cativas.
Fernão sente-se afundar em desânimo e remorsos, sem forças para sofrer este castigo divino, que se abatia impiedoso sobre a sua cabeça, decerto por ter andando no corso, cometendo ou deixando cometer crimes semelhantes aos dos tártaros que tanto o indignavam agora. Bem prega frei Tomás, faz o que ele diz e não o que ele faz. Como em Nouday, quando entraram vencedores na cidade, para resgatar os cinco portugueses que o mandarim se recusara a entregar.
António de Faria dera licença aos homens para saquearem o lugar à escala franca e o espólio fora riquíssimo, sendo o principal galardão a grande quantidade de donas e donzelas ali tomadas, violadas diante das famílias, arrebanhadas das suas casas, arrastadas para os barcos dos invasores, atadas de quatro em quatro com os morrões dos arcabuzes, chorando e suplicando compaixão aos seus algozes, que riam e cantavam, antegozando a posse de tão apetitosas fêmeas.
Ainda muito ferido pelo desamor de Huyen, trazendo cravado na alma o olhar de aversão que ela lhe lançara antes de morrer, Fernão julgara ver a mesma expressão de asco nos olhos da cativa que lhe coubera em sorte naquele saque. Cheio de raiva, lançara-se sobre a indefesa donzela, cuspindo-lhe insultos soezes, violara-a brutalmente, vingando-se do seu vexame, na dor e humilhação da sua vítima. Cevada a fúria e cheio de remorsos, fugira sem nada levar da casa, nem sequer a sua presa que soluçava nos braços da mãe.
Sobressalta-se, saindo do seu alheamento, ao ouvir falar a língua chim com um estranho acento e faz sinal a Borralho para que preste atenção aos homens da fogueira. O capitão Tileymay afastara-se por momentos com o seu lugar-tenente e o convidado que estava sentado mais perto dos prisioneiros, vendo que eles os observavam, perguntara na língua dos seus inimigos:
– De que nação sois? Como vos cativaram os chins?
– Somos mercadores de Malaca, embora oriundos de uma nação do outro lado do mundo – responde-lhe Jorge. – Os lauteaas prenderam-nos, sob falsas acusações, para nos roubarem as mercadorias e degradaram-nos para Quansy.
– Sois mercadores? Cuidei que éreis guerreiros. Não pelejais na vossa terra como nós na nossa? Se o vosso rei não é inclinado à guerra, não pode ser um grande rei.
– Senhor, sim! – replica Jorge, a tomar-lhe o pulso e entrando na jogada. – El-rei nosso senhor é muito grande, poderoso e rico, todos nós fomos criados e exercitados na guerra, desde muito pequenos.
O tártaro diz para os companheiros:
– Vinde falar com este cativos que me parecem homens de muita valia e siso.
Os três acercam-se curiosos e os portugueses sentem-se como animais raros numa jaula de feira.
– Como se chama a vossa nação? A que distância está daqui?
– Somos do reino de Portugal, o qual dista da cidade de Pequim quase três anos de caminho por mar.
– Quanto? Quanto? – perguntam incrédulos.
– Três anos! – confirma Fernão, incapaz de se manter afastado de qualquer novidade.
– Porque não vindes antes por terra, em vez de vos aventurardes aos trabalhos do mar?
– A terra é muito grande – explica Jorge – há nela reis de diversas nações que o não consentiriam.
– Que vindes buscar a estes lugares? Porque vos aventurais a tamanhos trabalhos?
Jorge e Fernão dão-lhes as suas razões com as mais enfeitadas palavras que lhes ocorrem. Os três oficiais ficam uns instantes como que suspensos e o que primeiro os interpelou, abanando três ou quatro vezes com a cabeça, diz para o mais velho:
– Esta gente, ao vir conquistar terra tão distante da sua pátria, dá claramente a entender que deve haver entre eles muita cobiça e pouca justiça.
– Assim parece – responde-lhe o outro –, porque homens que por indústria e engenho voam por cima das águas todas, para adquirirem o que Deus lhes não deu, ou a pobreza neles é tanta que de todo lhes fez esquecer a sua pátria, ou a cegueira que lhes causa a sua cobiça é tamanha que por ela negam a Deus e a seus pais147.
Riem-se os outros dois com a resposta e motejam um pouco entre si, na sua língua, que nenhum dos portugueses entende.
– Se algum de vós outros – diz-lhes o que aparenta ter maior prestígio –, pelo muito que haveis visto do mundo, souber de algum ardil com que o nauticor possa tomar este castelo, eu vos asseguro que em vez de serdes vós seus cativos, será ele vosso.
– Se ele nos der um assinado seu em nome d’el-rei – responde-lhe o desaforado Mendes, inconsideradamente, perante o pasmo dos companheiros que seguem a prática, mal ousando crer no que ouvem – de nos mandar pôr seguros no mar da ilha de Ainão, donde possamos ir livremente para a nossa terra, quiçá eu lhe faça conquistar o castelo com muito pouco trabalho.
O tártaro escancara os olhos, alvoroçado pela novidade, avisando-o em tom grave:
– Vê bem o que dizes, porque te asseguro que, se isso fizeres, te será concedido tudo o que pedires e muito mais ainda do que podes pedir.
É uma promessa que contém uma ameaça velada. Fernão, apercebendo-se da alhada em que aquele tunante sem juízo os está a meter, brada-lhe alarmado, quando o vê abrir a boca para falar:
– Que fazes, fumoso? Queres matar-nos a todos?
– Muito ventam os teus foles, rascão! – grita-lhe Borralho, com mais ódio aos tártaros do que aos chins, pela perda de Lijie. – Não te abastam os apuros em que estamos metidos?
– Como podes prometer-lhes o impossível, embusteiro!? – berra-lhe Vicente. – Estás a jogar com as nossas vidas.