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Embora sem terem compreendido tudo o que ele prometera aos invasores, pelo alarme dos três companheiros, os restantes portugueses percebem que Jorge Mendes acaba de os pôr em grave perigo e soltam os seus protestos em grande berraria, pedindo explicações.

– Bofé, senhores! – responde-lhes o folião, um tanto agastado. – A minha vida, estimo-a agora bem pouco, porque estes bárbaros não nos darão a liberdade sem resgate e nós não temos nada de nosso. Se vivermos, será como seus escravos. Já que assi é, tanto monta morrer hoje, como amanhã. Lembrai-vos do que os vistes fazer em Quansy, por aí julgareis o que nos podem fazer. Eu escolho morrer com honra, a combater.

Sem compreenderem uma só palavra da altercação dos folangji, os tártaros mostram o seu pasmo, com uma delicada repreensão:

– Falar alto e desentoado é mais próprio de mulheres, pois não têm freio na língua nem chave na boca, que de homens que cingem espadas ou tiram com frechas na guerra. Sossegai e, se é isso que vos apoquenta, crede-me quando vos afirmo que se puserdes em efeito o que acabais de prometer, o nauticor vos concederá tudo o que lhe pedirdes.

Apesar do que disse aos companheiros, Jorge Mendes parece embaraçado, como se não esperasse que a sua bazófia chegasse àquele ponto, e tenta arrepiar caminho:

– Em sendo manhã, deixai-me ver muito bem o castelo todo à roda, então vos direi o modo que se poderá ter para o tomar.

– Eu darei conta da vossa promessa ao Mitaquer – conclui o tártaro, satisfeito.

O capitão Tileymay regressa nesse instante e os seus hóspedes despedem-se para recolherem às suas tendas, deixando os prisioneiros mergulhados em desespero, a cobrir o fanfarrão de pragas e maldições.

Jorge Mendes cavalga ao lado do Mitaquer, como seu mestre do campo, com um novo espírito e ufania que os companheiros há muito não lhe viam, principalmente nos dias anteriores, quando parecera corrido pelas suas repreensões e arvoado da cabeça, talvez por só então ter tomado consciência dos apuros em que a sua bravata os metera a todos.

– Que vos parece este perro? – remorde Pereira, a modo de donaire e torcendo os focinhos, como é próprio dos portugueses, incapazes de tolerarem a boa fortuna dos seus vizinhos. – Meteu-nos numa camisa-de-onze-varas e anda como se trouxesse o rei na barriga!

– Vamos ser todos esquartejados, se estes bárbaros não tomarem o castelo – concorda Gaspar.

– E se por milagre o tomarmos, como ele imaginou – acude Melo, com a mesma má natureza, falando mais forte a sua inveja de Mendes do que a sua inimizade por Pereira –, há-de ganhar tamanha valia com os tártaros, que nos haveremos de dar por muito honrados de o servirmos toda a nossa vida.

Nunca o invejoso medrou, nem quem com ele se juntou, pensa Fernão, ao ouvi-los, embora se sinta a morrer de ansiedade, vendo agigantar-se ante os olhos as muralhas do castelo, com milhares de defensores nas torres e ameias engalanadas com os compridos estandartes ou guiões de seda à charachina. Irrita-o a ingratidão dos murmuradores contra Mendes, esquecidos de que fora graças ao seu engenho que estavam livres dos grilhões, eram recebidos com muita honra na tenda do Mitaquer, com quem comiam à tripa forra, tirando a barriga de misérias. Morra Marta morra farta! Se tiver de morrer, sempre é melhor ir de pança cheia e bem trajado, do que faminto e em andrajos.

Não fosse a invejice toldar-lhes os espíritos, os portugueses não poderiam fazer outra coisa senão admirar Jorge que, dois dias antes, tal como prometera ao general, fora com Valentim e Vicente – os mais experientes dos nove nas artes da guerra – e trinta cavaleiros tártaros, dar a volta à fortaleza, à procura dos seus pontos fracos, regressando ao arraial um tanto aliviado com o que vira.

Auxiliado pelos dois companheiros, traçara um plano de ataque que agradara muito ao Mitaquer, o qual logo ali lhe entregara um formão assinado em letras de ouro, onde declarava que daria aos nove folangji liberdade para volverem à sua terra, semelhantes aos seus filhos em honras e rendas de muita prata.

Nesse mesmo dia, o general fizera Jorge seu mestre do campo, por quem tudo e todos se governariam, incumbindo-o de traçar a ordem em que os capitães haveriam de acometer o castelo. O bargante distribuíra postos de comando pelo bando, encarregando-os do corte da faxina para entulhar os fossos, da recolha de cestos, enxadas e pás pelas casas das povoações abandonadas, da construção de trezentas escadas muito fortes e assaz largas para poderem subir por elas três homens ao mesmo tempo. O enfunado governara tão bem o campo que tudo ficara pronto para, na manhã seguinte, se fazer o assalto à fortaleza.

Aproveitando a liberdade, embora vigiada, de que gozavam com a nova situação, sempre que o trabalho o permitira, Fernão e Cristóvão tinham percorrido o campo, visitando todos os lugares onde os tártaros mantinham os prisioneiros, sobretudo as tendas e cercas com as mulheres, sem acharem rasto de Meng e Lijie. De início tinham feito perguntas às cativas, mas as infelizes encolhiam-se a um canto, mudas de terror ou a gemer, como bichos maltratados, outras nem se moviam do lugar onde jaziam, olhando-os com os olhos vazios, como mortas.

Fernão deixa de ouvir as vozes dos invejosos, abafadas pela matinada ensurdecedora dos atabales e outros instrumentos de guerra dando sinal para a investida. – Cada um é artífice da sua ventura, murmura entredentes e concentra-se na difícil tarefa de furtar o corpo à morte, com manhas em que tinha já algum traquejo pelos muitos combates com que a sua má ventura o galardoara.

O exército fora repartido em doze batalhões, por cinco fileiras muito compridas e, na vanguarda, uma contrafileira disposta em meia-lua que cingia todo o campo. Os oito portugueses estão todos juntos na ala comandada pelo companheiro promovido a mestre de campo dos bárbaros invasores.

Cerca de trinta anos mais tarde, Fernão descreveria, com os olhos da memória e em letra impressa, o assalto ao castelo e a espantosa proeza de Jorge que lhes dera a liberdade e de cujo texto a presente narradora transcreve algumas linhas, em proveito do leitor, pois muito melhor do que ela, que só pode narrar imaginando, o fez ele, embora recordando, por o ter vivido:

A primeira salva, que se deram os de fora e os de dentro, foi de muitas frechadas, e de muitos arremessos de zargunchos, e de pedras, e de panelas de cal em pó, e algumas de fogo, em que se gastou quase meia hora, e após esta salva, logo os tártaros sangraram a cava por seis ou sete partes, e entulhando-a com muita presteza com faxina e terra, foram logo as escadas todas juntamente encostadas ao muro, que já ficava muito baixo por causa do entulho. O Jorge Mendes foi o primeiro que subiu pelas escadas, acompanhado de dous dos nossos, que como amoucos iam determinados de morrerem ou fazerem cousa com que se sinalassem, e prouve a Nosso Senhor que lhe sucedeu bem, assi por serem eles os que fizeram esta primeira entrada, como por arvorarem o primeiro guião, de que o Mitaquer com todos os mais que estavam com ele ficaram tão espantados que diziam uns para os outros: se o rei desta gente cercara o Pequim como nós o cercámos, o chim perdera mais depressa a sua honra do que lha nós fizemos perder148.

145 A partir da tradução de Sérgio Capparelli. Li Bai (701-762) foi um dos maiores poetas chineses da dinastia Tang.

146 Peregrinação, capítulo CXVIII.

147 Peregrinação, capítulo CXXII.

148 Peregrinação, capítulo CXIX.

LIVRO V

MAR DO JAPÃO

CIPANGO

No ano de 542, achando-se Diogo de Freitas no reino de Sião, na cidade de Odiá, capitão de um navio, lhe fugiram três portugueses num junco que ia para a China: chamavam-se António da Mota, Francisco Zeimoto e António Peixoto. Indo-se de caminho para tomar porto na cidade de Liampó, que está em trinta e tantos graus de altura, lhes deu tal tormenta à popa que os apartou da terra, e em poucos dias, ao levante, viram uma ilha em trinta e dous graus, a que chamam os Japões, que parecem ser Cipangas e suas riquezas, de que tanto falam as Escrituras; estas também têm ouro e muita prata e outras riquezas.