(Tratado dos Descobrimentos, de António Galvão, 1550)
I
Ao entrar na vila, obedeça aos que nela moram
(japonês)
Da ilha de Zipangu (Cipangu):
Zipangu é uma ilha do levante que está no alto mar a mil e quinhentas milhas. A ilha é muito grande. A gente é alva, de boas maneiras e belas. São idólatras e não estão sujeitos à senhoria de ninguém senão a si próprios. Encontra-se aqui ouro, mas não muito; ninguém aí vai e nenhum mercador leva deste ouro, razão pela qual têm tanto.
O palácio do senhor da ilha é muito grande e coberto de ouro, como entre nós se cobrem de chumbo as igrejas. E todo o espaço das câmaras é coberto de ouro da grossura de bem dois dedos e todas as janelas e paredes e tudo o mais e também as salas: não se podendo dizer o seu valor.
Têm muitas pérolas, as quais são vermelhas, redondas e grandes, mais caras do que as brancas. Também há muitas pedras preciosas, não sendo possível contar a riqueza desta ilha.
Fiquem sabendo que os ídolos destas ilhas e os do Catai são todos de uma maneira uns com cabeça de boi, outros com cabeça de porco e de muitas outras espécies de animais; e há-os com uma cabeça e quatro rostos, ou com quatro cabeças e também com dez; e quantas mais têm, maior esperança e fé têm neles.
Agora vos direi de uma usança desta ilha. Quando alguém prende um homem que se não possa resgatar, convida os seus parentes e companheiros e o faz cozer e dá-o a comer a todos esses; e dizem que é a melhor carne que se pode comer.
(Il Milione, de Marco Polo, livro terceiro, capítulo CXXXVIII)
O junco navegava há vinte e três dias com muito trabalho, balançando ao sabor das ondas e dos ventos endemoninhados, bem avante do arquipélago de Léquios e sem achar uma enseada onde lançar ferro. Pinto, Borralho, Zeimoto e António da Mota iam com o credo na boca, temendo a cada instante ver o navio encalhar nos baixios ou desfazer-se contra as rochas das ilhas e ilhotas daquele mar desconhecido.
Só o capitão Wang Zhi, nomeado entre os portugueses por Samipocheca, parecia ter algum conhecimento daquela derrota, talvez por já ter andado por ali no corso. O seu piloto fora morto na fera batalha travada pelas duas fustas contra os sete navios do corsário ladrão que os desbaratara e forçara a fugir, deixando o sobrinho do capitão entregue à sua sorte, no junco em chamas onde iam os outros cinco companheiros desavindos.
Fernão dava-os por perdidos. Embora não sentisse estima por eles, lamentava deveras a sua perda, visto serem os portugueses tão poucos e tão dispersos por aquelas longínquas paragens, que só teriam salvação se se unissem e amparassem, em vez de se digladiarem em contínuas quezílias, tratando de matar-se uns aos outros ao menor desentendimento. Como sucedera com o seu bando.
Tendo a malícia vista fraca e memória forte, os desacertos ou rivalidades geradas no corso com António de Faria, que haviam fervilhado em lume brando por medo do capitão, foram-se agravando entre os nove náufragos durante o cativeiro na China, até explodirem em ódio e violência que só por milagre os não levaram a todos à morte. Após um curto interregno de paz, a sua libertação pelos tártaros em vez de os unir contribuíra de novo para os separar.
Roídos de inveja de Jorge Mendes, a quem o nauticor Mitaquer cumulara de honrarias por lhe ter conquistado o castelo de Nixiamcoo, os cinco brigões tinham esquecido momentaneamente as suas próprias ofensas e inimizades para se unirem contra Fernão, Borralho e Zeimoto que defendiam o companheiro, a cuja bravura deviam a liberdade, além de outras mercês concedidas por Altan Khan.
O nauticor, muito orgulhoso das suas vitórias sobre a cidade de Quansy e o castelo de Nixiamcoo, determinara levar os portugueses à presença do seu rei, cujo acampamento se encontrava a algumas jornadas de distância. Khan viera decidido a conquistar Pequim, porém, em consequência da seca que há anos assolava as províncias do norte da China, apesar das cidades que pilhara, sofrera grande míngua de mantimentos, de modo que a fome e a peste ameaçavam dizimar-lhe o exército mais depressa do que as armas dos chins, forçando-o à retirada.
Altan Khan recebera portugueses na sua tenda com honras de grandes guerreiros, fizera mercê a cada um deles de dois mil taéis de prata, dera-lhes cavalos e a protecção de uma escolta para os levar em segurança até um porto onde pudessem embarcar para Malaca. Jorge Mendes aceitara o convite para ficar ao seu serviço, pela bela soma de seis mil taéis de soldo, dos quais dera mil aos companheiros, à despedida.
O bando tinha chegado sem nenhum incidente digno de nota a Lampacau, cujo nome significa União das Ondas Brancas149, nas costas da China, onde se juntavam os mercadores e corsários chineses, japoneses e portugueses para fazerem veniaga sem pagarem direitos à Coroa. Ali acharam um junco de Patane e outro de Lugor, do reino do Sião, que iam regressar às suas terras, de onde poderiam conseguir facilmente transporte para Malaca, destino por que ansiavam quase tanto como pela pátria.
No momento de decidirem qual o rumo a tomar, se para Patane ou para Lugor, tal como sucedera na briga da Muralha que tantos dissabores lhes causara, a desventurada natureza dos portugueses dera causa a nova rixa, tão assanhada que o necodá dos tártaros que os escoltara na viagem, apesar de não ser natural de uma nação pacífica, se horrorizara com o seu comportamento.
– Sois bárbaros da pior espécie! Gente baixa e bruta como as feras! Recuso-me a passar mais um instante que seja na vossa companhia. Prefiro que el-rei me mande cortar a cabeça pela desobediência, do que ofender aos céus só por estar junto de vós ou levar carta ou recado vosso a alguém – e virara-lhes as costas, fremindo de indignação.
Ao tomarem conhecimento do caso, os capitães dos dois juncos recusaram-se a recebê-los a bordo e fizeram-se à vela, abandonando-os nos matos, onde viveram durante vinte e seis dias como bichos, passando grandes perigos e miséria, mas sem nunca fazerem as pazes ou prestarem socorro uns aos outros. Só Fernão, Borralho e Zeimoto continuaram unidos, mantendo-se apartados dos restantes.
A salvação chegara-lhes pela mão do corsário chim mais procurado pela armada do aytao de Chincheu, que o perseguira e desbaratara, apresando-lhe vinte e seis velas da sua frota. Wang Zhi lograra fugir apenas com dois juncos, refugiando-se em Lampacau, para restaurar as forças e curar os feridos. Com ele vinha o português António da Mota, conhecido de Zeimoto, que lhes propôs engajarem-se com o corsário, por lhe faltar gente para equipar os dois juncos.
Entre morrer nos matos ou lançar-se no corso e ganhar alguns proventos no saque das presas, enquanto não achassem barco que os levasse a Malaca, não havia que hesitar. Fazendo das tripas coração, engolindo o orgulho, vieram à fala uns com os outros, a fim de assentarem partido com o capitão para que os tomasse como matalotes e soldados de fortuna. Sarados os feridos, deixaram Lampacau vinte dias mais tarde, embarcando os três amigos com o capitão e os restantes companheiros com o sobrinho, posto que entre eles não houvera reconciliação.
A captura de boas presas rendera-lhes um proveitoso espólio, até ao momento em que, rumando Noroeste-Sueste, abaixo do porto de Chaozhou150, na foz do rio do Sal, se dera o mau encontro com os sete navios bem armados do wokou ladrão, que os levara de vencida.
Depois de navegarem três dias sem descanso, para se porem fora do alcance da sua frota, quando já se viam em segurança à vista de terra, colheu-os um vento esgarrão que fazia tais terramotos no mar como se todos os espíritos infernais andassem a revolver as ondas. Nessa mesma noite perderam a costa de vista, cuidando perder também as vidas, acabando por arribar sãos e salvos ao arquipélago de Ryūkyū ou Léquias, um reino independente de mais de cinquenta e cinco ilhas, onde se fazia boa veniaga. Sendo Zhi muito conhecido ali, bem recebido pelo rei, aproveitara a estadia para vender a fazenda, reparar os juncos e dar descanso aos homens.