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Nas vésperas da sua partida, os léquios viram aparecer um prodígio no céu, uma formação grossa de diversas cores, tão melancólicas que enchiam as almas de temor; as nuvens, de tão rasteiras, pareciam pousar sobre as cabeças das pessoas, as aves, obedecendo à voz do instinto, levavam os ninhos de cima das árvores para os esconderijos das lapas.

Zhi que desejava percorrer as costas do arquipélago, partira sem querer saber dos avisos dos matalotes mais velhos, nem quando lhe apontaram o olho-de-boi, o sinal do tufão, aconselhando-o a buscar porto de abrigo sem demora. O mar, apesar de estranho, estava sossegado, no entanto, ao contrário do arco celeste que indica bonança, o olho-de-boi é sinal seguro da ira de Deus, a qual não tardara a tombar sobre o junco indefeso e os seus cem ocupantes.

Durara-lhes vinte e quatro horas a luta para se manterem à tona, de madrugada, os ventos ponteiros e as correntes contrárias tinham-nos arrastado, assim perdidos, até ao ponto onde agora se encontravam.

Fernão desperta da sonolência com o grito do avistamento de terra, saudado por grandes brados de alegria, criando novo ânimo na chusma extenuada que faz arribar o junco à costa em busca de uma angra para surgir.

– Olhai, a sul, aquele clarão ao horizonte do mar – brada Zhi.

– É um luzeiro de fogo.

– A ilha é povoada, Deus seja louvado!

– Veremos se é gente de bom trato, porque precisamos de água – diz o capitão. – Pode ser que a povoação tenha um bom surgidouro.

Acham-no a setenta braças da costa e, enquanto procedem às tarefas de amainar velas e lançar ferro, acercam-se duas almadias com seis homens. Muito bem apessoados, corpos fortes, boas feições. Assemelham-se aos chins, embora mais alvos, de olhos pequenos e poucas barbas. Pedem por gestos para subir a bordo e o capitão recebe-os com grande cortesia.

Trocam entre si salvas e zumbaias à charachina, mas os gentios não falam a língua chim e Zhi tão pouco conhece a deles, nem há no junco quem a saiba. Por gestos, os visitantes perguntam-lhe donde vêm e o capitão consegue dizer-lhes que são mercadores, mostrando-lhes algumas sedas e couros que trazem para veniaga.

– Nishimura Koura151, Tanegashima152 – responde Tsurumi, o chefe do grupo, ao gesto interrogativo do capitão que aponta para o cais da povoação. Faz um gesto circular, mais largo, acrescentando: – Nipongi.

Os três portugueses seguem o diálogo de surdos, tentando perceber se os sons e as palavras se assemelham aos da língua chim; os visitantes miram-nos estupefactos, como se estivessem diante de uma aberração da natureza, murmurando Seiban, seiban153.

– Tanixumaa? – repete Pinto, olhando para Cristóvão Borralho e Francisco Zeimoto, a pedir confirmação, mas ambos encolhem os ombros. – Se Tanixumaa é a ilha, Nipongi há-de ser esse tal arcipélago do Japão, de onde vai a prata para Malaca.

Tsurumi fala de novo, procurando dizer não só ao capitão da Grande Ming como àqueles estranhos tenjikujins154 que Tokitaka é o senhor de Tanegashima e eles serão muito bem-vindos para fazerem os seus tratos, se lhe pagarem os direitos devidos

– Chama-se Naotoki, o senhor da ilha? – pergunta Cristóvão, que pouco percebeu do arrazoado, e acrescenta numa súbita inspiração: – Serão estes os japões de que nos falaram os léquios?

Zeimoto solta um assobio de assombro:

– Nipongi é o Cipango de Colombo? No seu globo do mundo, Martinho da Boémia155 dizia que na ilha de Cipango cresce oiro em abundância, toda a sorte de pedraria e pérolas orientais. Será verdade? Os antigos enganaram-se em tantas cousas, como bem temos visto nas nossas viagens.

– Marco Polo disse que Zipangu é uma única ilha – lembrou Fernão –, com tanto ouro que os paços d’el-rei estão cobertos por ele, os seus ídolos têm cabeças de bicho e os seus naturais comem carne humana. – Sente um calafrio, ao lembrar-se da sua aterradora experiência no reino dos Batas. – Parece-me que o veneziano se enganou ou mentiu de propósito sobre muitos lugares que eu já visitei e ele nem sequer deve ter visto de passagem, porque só diz inzonas e invenções. Esta gente parece ser de tanta polícia como os chins, não acredito que sejam comedores de homens.

Recorrendo sempre à linguagem dos sinais, Tsurumi indica-lhes uma calheta abrigada onde poderão surgir, indo as almadias juntamente com o batel, pela proa, para conduzirem o junco a bom porto. Assim guiados, não têm dificuldade em aferrar bem perto de terra, de onde vêm logo muitas almadias a vender alimentos e outros produtos.

– Capitão, deixai-nos ir convosco a terra – roga Fernão, vendo que Zhi se prepara para desembarcar.

– Não podeis ir todos ao mesmo tempo, pois aqui nunca veio ninguém como vós e esta gente não gosta de estrangeiros, mesmo sendo semelhantes na figura, como eu. Vem tu com o Mota, que já me acompanha há mais tempo e pode dizer-te como te deves comportar.

– Vê tudo bem visto, para nos contares como foi lá – lança-lhe Borralho, junto de Zeimoto, à despedida, com risonha inveja.

149 Langbaigang ou Langbaijiao.

150 Na Peregrinação, capítulo CXXXII, é nomeado por Chabaqué; que também poderá ser o porto de Chenghai (China).

151 Cabo Kadokura.

152 Fernão Mendes Pinto chama-lhe Tanixumaa. Actual ilha Tanegashima, de 445 km2, situada a 30º 30’ N. e 131º 0’ E., estende-se por cerca de 35 quilómetros, através do estreito de Ōsumi, a sul de Kyushu.

153 Bárbaros do Ocidente.

154 Estrangeiros, gente da Índia, transformado em chenchicogis, na Peregrinação.

155 Martin Behaim, autor do celebrado globo de Nuremberg, construído no mesmo ano em que Colombo fazia a sua viagem de descobrimento.

II

Pouco se aprende com a vitória, mas muito com a derrota

(japonês)

Teppoki156 ou Relação do Mosquete, de Nanpo Bunshi:

Ao sul de Gushu157, a dezoito ri158 da costa há uma ilha chamada Tanega. Ali têm vivido, há muitas gerações, os meus antepassados. Segundo uma lenda de tempos antigos, o nome de Tanega, Ilha da Semente, derivou do facto de o número de habitantes, apesar da pequenez da ilha, ter crescido e prosperado como sementes que, uma vez plantadas, crescem e produzem inúmeras novas sementes

Há alguns anos, na era Tenbun [1532-1554], no vigésimo quinto dia do oitavo mês, no Outono do ano da Lebre (aos vinte e três dias de Setembro de mil quinhentos e quarenta e três), um grande navio chegou à hora do galo [entre as seis e as oito da tarde] à baía de Nishimura. Ninguém sabia de que nação vinha. Havia cerca de cem pessoas a bordo, cujos traços físicos diferiam dos nossos e cuja língua não se compreendia. Quem os viu achou-os muito estranhos. Entre eles estava um letrado da Grande Ming. O seu nome próprio era Gohō159. Ignoramos o seu nome de família. Era então chefe do lugar de Nishimura um homem chamado Oribenojō, bom conhecedor da sua escrita.

Na praia espera-os o samurai Oribenojō Tokitsura, chefe do lugar de Nishinomura, sujeito aos senhores de Tanegashima. Saúda Wang Zhi com muita cortesia, dando-lhe o nome de Goho, sem conseguir desfitar os rostos dos dois portugueses ou disfarçar o pasmo que lhe causam as suas barbas hirsutas, os grandes narizes e os olhos esbugalhados. Uma multidão de curiosos acotovela-se e empurra-se para os ver, com igual assombro, embora mantendo a distância imposta pelo acatamento devido ao chefe da povoação, rodeado dos parentes e da gente do seu ofício.

Fernão está tão maravilhado como eles, por se achar em terra virgem, entendendo pelas suas manifestações que nunca tinham visto um europeu. Ele é o primeiro ocidental a pisar o solo dos japões e só não se ajoelha em terra para beijar o solo, porque está a ser observado, escrutinado por centenas de olhos e não quer dar um passo em falso ou fazer um gesto errado que dane aquele negócio. Tanto os homens como as mulheres vestem quimões e catabiras, uma espécie de vestidos pintados, largos, com as mangas caídas, que erguem por detrás para não os sujarem no pó ou na lama, o que por vezes lhes deixa o norte a descoberto. As mulheres não usam toucado, trazem os cabelos untados com óleos, para ficarem mais pretos, atados atrás ou enrolados no meio da cabeça com um fio de papel; rapam as sobrancelhas e as testas, cobrem os rostos de alvaiade, por ser a alvura da pele sinal de beleza, mas tingem os dentes de preto.