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A fusta acostara. Cumpridas as manobras de ancoragem e as formalidades do porto, o cavaleiro branco subiu a bordo da Silveira para falar com o capitão. Com ele vinham três nobres abexins, pardos e não negros como os restantes membros da comitiva que ficaram em terra; bem apessoados e de bons corpos, usavam o trajo de guerreiro etíope feito de couros curtidos e vinham armados com espadas semelhantes às portuguesas em vez do arco e da lança indígenas.

Aproveitando a pausa na acção e o fim do capítulo, apressa-se a narradora a sair do anonimato para, com a sua própria voz, dar uma explicação ao leitor sobre o modo como carteou esta longa viagem por onde pretende levá-lo no rasto de Fernão Mendes Pinto, alertando-o para os escolhos, baixios e restingas onde poderia encalhar, correndo o risco de se perder.

Ao abordar a peregrinação de Fernão Mendes Pinto pelos mares do Oriente, debateu-se esta sua narradora com uma particular dificuldade, que apenas poderá ser ultrapassada com a cumplicidade do leitor: conciliar os tempos e os lugares de passagem deste irrequieto andarilho (tão móveis quanto diversos) com a estrutura narrativa repartida por sete mares, de modo a completar as histórias de cada um deles, articulando ainda os episódios vividos no presente com os sucessos do passado, aquando dos primeiros encontros dos portugueses com esses povos e lugares.

E porque a vida humana é imprevisível e não imita a ficção, mas sim o contrário, a narradora roga ao seu leitor que entre neste jogo de quebra-cabeças e, qual Viajante no Tempo, se passeie por esta teia intemporal ao sabor da narrativa.

1 Embarcação de cerca de trezentas toneladas, chata, alongada, com vela latina (triangular) e dezasseis bancadas de remos para as suas chusmas ou tripulações.

2 Cafre, da palavra árabe kàfir (infiel), designava o negro do sertão africano, não cristão e sem polícia, ou seja, pouco civilizado, na perspectiva do conquistador e do mercador muçulmano ou cristão.

3 Soqotra ou Sukutra, uma das maiores ilhas ocidentais do oceano Índico, à entrada do mar Roxo, conquistada por Afonso de Albuquerque com Tristão da Cunha onde, dada a sua importância estratégica, se fez uma fortaleza que pouco tempo depois acabou por ser abandonada devido às dificuldades de manutenção.

4 Turno da meia-noite às quatro da manhã.

5 Um halo lunar (Roteiro de Lisboa a Goa, de D. João de Castro), mais raro do que o solar. Ao contrário do arco-íris, que aparece na parte do céu oposta à que o astro ocupa, estes halos surgem entre o observador e o astro luminoso, produzidos nos cristais de gelo que estão suspensos a grande altura.

Tem parentesco com a hiena, e todas as hienas serão tuas amigas

(africano)

Como neste tempo de el-rei David entrou em Etiópia um poderoso mouro e causou nela grande destruição:

Este imperador David em Etiópia, tendo logrado em sua primeira idade grandes triunfos dos mouros seus inimigos, passou os últimos dias de sua vida entre grandes tribulações e terríveis fadigas, causadas todas pela entrada que em suas terras fez Ahamed, mouro mui temido e poderoso, a quem chamaram por alcunha o Granhe, que quer dizer Esquerdo, por ser esquerdo nos braços, sendo mais sinistro na vida; o qual com um copioso exército e com grã soberba e bárbara arrogância tratava de conquistar toda a Etiópia .

Vendo, pois, o triste imperador como ia o seu império miseravelmente descaindo e que o general dos mouros, Granhe, ia à maneira de um impetuoso rio ou como um raio abrasador, levando e assolando tudo, tratou de mandar pedir socorro à Índia aos portugueses e também a Portugal, a el-rei D. João III e ainda a Roma, querendo outra vez dar obediência ao Sumo Pontífice, para assim mais o obrigar.

(História da Etiópia, de P.e Baltasar Teles)

– Sou Vasco Martins de Seixas, natural da vila de Óbidos – apresenta-se o recém-chegado, com um grande sorriso. – Há um mês que estou aqui, a mando do feitor Henrique Barbosa, à espera que passe um barco de portugueses para enviar uma carta ao nosso capitão António da Silveira, com o pedido de todos nós para ele mandar logo gente armada, a fim de libertar os portugueses tomados pelo Granhe na última batalha. Os cativos inda devem estar em Zeila, mas não tardarão a ser enviados como escravos de esmola para Meca ou vendidos nos mercados dos mouros.

Termina com as lágrimas a correr-lhe pelo rosto e os três abexins, para espanto dos presentes, têm também os olhos marejados.

– Estes três moços são filhos de Cid Petrus – acrescenta quando pode falar de novo –, aquele Pêro da Covilhã que foi mandado por el-rei D. João II a descobrir o Preste. Os seus dezoito filhos entendem e falam alguma cousa da nossa língua, porque o pai praticava muito com eles em português.

– Que mais fez ele por cá. além de filhos? – pergunta o capitão, com uma risada, abismado da novidade. – No reino, até à chegada do embaixador Mateus no ano de catorze, pensava-se que ele morrera, como o companheiro Afonso de Paiva, sem ter cumprido a sua missão.

– E, no entanto, cumpriu não só a sua como a do companheiro, descobrindo o Negusa Nagast ou Rei dos Reis que nesse tempo era Eskender e lhe concedeu o título de Ajazé, que é como o nosso Dom para fidalgo, dando-lhe um grande feudo de terras, gados e gentes armadas, benesses confirmadas pelo imperador Na’od e também por Lebna Dengel, o Preste David que hoje reina e ao lado de quem Pêro morreu a combater o Granhe.

Os capitães das fustas reúnem conselho e determinam enviar quatro homens como emissários à mãe do Preste Anaf Sagad, Sabla Vangél, cujo nome significa Espiga do Evangelho, que está refugiada em Damaa, uma escarpada montanha-fortaleza, enquanto o filho trava acesa guerra contra as forças da jihad do Canhoto que continuam a devastar-lhe terras e cidades. O imperador pediu socorro aos portugueses e a rainha espera a carta do governador da Índia, pelo que os capitães terão de lhe apresentar uma desculpa convincente por não lhe trazerem a esperada resposta. Ávido de novidades, Fernão oferece-se para a missão e é aceite como escrivão da embaixada.

Por ordem de Sabla Vangél, o Barnagais ou Senhor dos Mares, nome dado ao governador daquela província, fornece-lhes montadas e camelos para o transporte do fato e dos presentes que levam, além de criados para os servirem e de uma escolta de seis guerreiros porque as estradas são perigosas. O malfadado Granhe, além de ser um formidável general, fez aliança com os turcos, já senhores do Egipto e de muitos portos do mar Roxo, que lhe enviaram companhias de soldados e janízaros disciplinados, munidos de armas de fogo muito superiores às dos abexins. Há dez anos recomeçara as hostilidades contra a Abássia e, proclamando a jihad ou guerra santa contra os cristãos, invadira e conquistara grande parte das províncias, acossando e perseguindo o Rei dos Reis por vales e montanhas, até ao próprio coração do império.

Por onde passava o exército móvel e ligeiro de Ahamed, nada ficava de pé e só sobreviviam os que se faziam mouros e serviam os conquistadores. Tudo era saqueado e queimado, em particular igrejas e conventos, depois de estripados das ricas alfaias de ouro e prata, dos panos preciosos de brocado, seda e veludo, reduzidos a cinza que o vento dispersava pela terra enegrecida. Destruíra e pilhara a cidade Axum da lendária rainha de Sabá e roubara o tesouro real guardado na Amba Nagast, uma serra que se julgava inexpugnável.

Isto contam Seixas e os três filhos do escudeiro Pêro da Covilhã, com muita emoção quando, ao fim da primeira jornada, acampam para cear e dormir, em resposta às perguntas que lhes fazem os recém-chegados, vendo as terras queimadas e as povoações destruídas e abandonadas.