– Sois um povo mui parecido ao do Grande Ming – diz-lhe Fernão, usando o nome que os seus naturais dão à China, crendo tecer-lhe um elogio. – Foram eles os primeiros povoadores destas ilhas?
Shuza franze o sobrolho, contudo domina de imediato a sua irritação, respondendo com voz sossegada embora um pouco tensa:
– As gentes do Grande Ming gostam de se gabar desse feito improvável, afirmando que em tempos remotos, um príncipe de uma das suas mais poderosas famílias conspirou com os seus parentes e aliados para matar o rei e subir ao trono em seu lugar. Descoberta a conspiração, o soberano condenou os conspiradores e os seus descendentes ao exílio perpétuo. O príncipe foi degredado, com toda a sua família e as dos seus aliados, para estas ilhas desabitadas, onde determinou ficar, povoando-as com a gente que levava consigo. Essa lenda foi aceite como verdadeira pelo nosso primeiro rei e, desde então, todos os imperadores descendem dessa família. Mas a verdade é outra, o nosso povo remonta à formação do mundo, como está escrito nos nossos livros sagrados.
– Conta-nos essa história, por tua vida – roga Fernão para se redimir de o ter ofendido.
– O Senhor do Céu e da Terra era um gigante de um tamanho tão descomunal que tinha um pé no alto e outro no baixo. Num acesso de mau humor arremessou uma lança dos céus sobre a ilha de Nipongi, a qual se enfiou pela terra dentro, abrindo um buraco de onde surgiu uma mulher muito formosa. Um dia em que ela se sentou à beira de um rio, um crocodilo saiu da água e, ferrando-a, comunicou-a166 por força; a mulher ficou prenhe daquele sucesso e, no devido tempo, pariu um filho, cuja prole povoou toda a ilha. Ainda hoje existem muitos Cōguis, uns fidalgos da casa d’el-rei, que descendem directamente dessa casta e honram-se tanto disso que trazem nos calções uns rabos dependurados à maneira dos crocodilos.
Como o capitão Zhi não estava presente, Tadashi acrescenta com ironia:
– Esta é a nossa verdadeira origem, contudo os chins não aceitam isto por se acharem superiores à nossa gente, quando nos são bem inferiores. Assi, a maior ofensa que podereis fazer a qualquer japão é chamar-lhe chim. – Solta uma gargalhada e termina: – Creio que o mesmo é válido para a gente do Grande Ming em relação a nós.
– Nós cremos num Deus único e invisível, criador do Universo.
– Um só deus para uma tão grande obra? – estranha o bonzo, rindo-se da ignorância dos tenjikujins, porém domina-se, não querendo humilhá-los e decide dar-lhes a primeira lição de civilização. – Muito antes do gigante de que vos falei, houve três deuses primordiais, invisíveis, que criaram o Universo separado em duas partes, sendo a superior uma vasta planície e a inferior uma massa de líquido tumultuoso. Na Planície do Alto Céu, nasceram posteriormente cinco pares de divindades, sendo o último, o mais importante, formado por Izanagi que quer dizer Aquele Que Convida, e Izanami ou Aquela Que Convida, os quais foram incumbidos de transformar o líquido proceloso em terra firme. Izanagi mergulhou nele a sua lança, as gotas que caíram coalharam para formar a ilha de Onogoro, onde as duas divindades vieram morar para a povoarem, tendo aí o seu primeiro filho Hiro-ko e criando as oito ilhas principais do Nippon.
Shuza vê os estrangeiros entreolharem-se, rindo à socapa, mas não interrompe o seu relato, ciente de que a persuasão é melhor arma para os conquistar.
– Da união do casal nasceram também Ohovata-tsumi, o deus do mar, Shima-Tsu-Hiko, o do vento, Kukuno-chi, o das árvores, Ochoyana tsu-mi, o das montanhas e muitos outros, sendo o último o deus do fogo que, ao nascer incendiou Izanami que morreu queimada. Inconsolável, Izanagi viajou até Yomi, a Terra dos Mortos, para a trazer de novo para a Terra dos Vivos. Todavia, muito zangada, cheia de vergonha do seu corpo queimado e engelhado, Iznami expulsou o esposo para fora de Yomi. Izanagi foi-se lavar num rio para se livrar da sujidade dos mortos; das suas roupas, olhos e nariz nasceram muitas deidades, como a deusa Amaterasu, a luz do céu, ou Susano-o, o deus do mar e das tempestades, banido pelo pai por ser muito rebelde. Assim, a família imperial descende da divina Amaterasu e não de Susano-o, o deus caído em desgraça.
Ia já a meio a hora do cão167, todavia os tenjikujins, em particular aquele a quem chamam Murashukusha, não se cansam de o ouvir, fazendo-lhe perguntas, mesmo quando lhe servem comida, de que ele apenas toma um pouco de arroz e fruta, recusando o resto, por ser homem estudioso, de vida austera, desligado dos mimos do mundo. Por fim, extenuado pelo esforço de ter servido de tçuzu o dia inteiro, enrola-se no cobertor que lhe deram e, deitando-se na esteira, adormece no mesmo instante.
156 Relatório da introdução das armas de fogo no Japão pelos portugueses, escrito para Tanegashima Hisatoki, o filho de Tokitaka, por Nanpo Bunshi (1555-1620), um estudioso de Confúcio, sacerdote do templo de Dairy ji.
157 Província de Ōsumi.
158 Ri – antiga unidade de medida japonesa, equivalente a 3,927 km. A distância de 18 ri corresponderá a cerca de 70 km.
159 Seria o famoso pirata chinês Wu-feng ou Wang Zhi.
160 Tratado do cerimonial de cortesia.
161 Cerca de 51 km.
162 Actual Nishinoomote.
163 Tanegashima Shigetoki (1503-1567) era avô de Hisatoki – o autor do Teppōki – foi o décimo terceiro senhor de Tanegashima que, vencido na guerra, abdicou do senhorio das ilhas em favor do filho Tokitaka (1528-79), de quinze anos, pouco antes da chegada do junco com os portugueses.
164 Pequena embarcação japonesa a remos.
165 Pulidujia foi o nome dado pelos chineses a Portugal, nos primeiros documentos sobre a chegada dos portugueses.
166 Comunicar, no sentido de ter conversação com, significa ter relações sexuais.
167 Cerca das nove horas da noite.
III
O homem comum fala, o sábio escuta, o tolo discute
(japonês)
Carta do P.e Francisco Xavier aos seus companheiros residentes em Goa:
Parece-me que, entre gente infiel, não se encontrará outra que ganhe aos japões. É gente de muito bom trato e, geralmente, boa e não maliciosa. Gente de honra muito de maravilhar: estimam mais a honra que nenhuma outra coisa. É gente pobre, em geral, e a pobreza, entre fidalgos e os que não o são, não a têm por afronta.
É gente de muitas cortesias uns com os outros. Apreciam muito as armas e confiam muito nelas: sempre trazem espadas e punhais; e isto todas as gentes, assim fidalgos como gente baixa; com idade de catorze anos, já trazem espada e punhal.
É gente que não sofre injúrias nenhumas, nem palavras ditas com desprezo. A gente que não é fidalga tem muito acatamento aos fidalgos. E todos os fidalgos se preciam muito de servir ao senhor da terra e são muito sujeitos a ele: isto me parece que fazem, por lhes parecer que, fazendo o contrário, perdem da sua honra; mais que pelo castigo que do senhor receberiam se fizessem o contrário. É gente sóbria no comer, ainda que no beber são algum tanto largos: bebem vinho de arroz, porque não há vinhas nestas partes.
São homens que nunca jogam, porque lhes parece que é grande desonra: pois os que jogam desejam o que não é seu, e daí podem vir a ser ladrões. Juram pouco e, quando juram, é pelo sol. Grande parte da gente sabe ler e escrever . É terra em que há poucos ladrões, e isto pela muita justiça que fazem nos que acham que o são, porque a nenhum dão vida: aborrece-os muito e de grande maneira este vício de furtar. É gente de muito boa vontade, muito conversável e desejosa de saber.