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Vosso todo em Cristo, Irmão caríssimo

Francisco

Wang Zhi desembarca com amostras das mercadorias que salvara do ataque do wokou, para as apresentar ao jovem senhor, na mira de obter licença para fazer tratos com os mercadores de Tanegashima. Espera-os na praia um capitão com uma hoste de soldados, para os conduzir a casa do daimyō. A fim de o comprazer e ganhar o seu favor, o capitão leva-lhe um bom presente de peças de seda e outras curiosidades da China, em paga do batel carregado de provisões que, na véspera, ele enviou ao junco para refresco dos tripulantes, cuja vista suscitara um coro de vivas e aplausos.

Sendo costume nas partes do Oriente as embaixadas apresentarem-se com muita ostentação, para ornamento da sua primeira visita o corsário leva no seu séquito, além dos portugueses e do bonzo Tadashi Shuza, os doze chins de melhor presença ou mais autoridade do seu bando, trajados como ricos mercadores. A nova da visita dos tenjikujins espalhara-se, o porto abarrota de gente, assim como as ruas, em cujas árvores se empoleiram crianças irrequietas como pássaros; nas portas, janelas ou mesmo nos telhados apinham-se os curiosos para verem passar o luzido cortejo.

– Todas as casas são feitas de madeira, porque nas nossas ilhas os tremores de terra, tufões e furacões são muito comuns – explica-lhes o bonzo.

Fernão acha-as formosas, muito bem lavradas, com grossas telhas pretas, cozidas e envernizadas, tão rijas que duravam séculos sem se gastarem ou descorarem, segundo lhe diz o monge. São guarnecidas por fora de um estuque feito das conchas de certo marisco, para as fortalecer, dando-lhes uma brancura de neve que as faz resplandecer ao longe, tão aprazíveis à vista que os visitantes sentem o coração alegrar-se.

– Que edifício é esse, Shuza? Parece um palácio. É a casa do Senhor Tokitaka?

– Não, tenjikujin, é um mosteiro como tantos outros, das muitas religiões que existem em todas as ilhas para os bonzos e as biconis. – capta o gesto de incompreensão de Fernão e explica: – as nossas mulheres religiosas.

O mosteiro é um gracioso edifício de dois pisos, com pátios enquadrados por setenta grossas colunas de cedro muito ornamentadas, que eles entrevêem pelos grandes portais de quarenta pés de alto por vinte e cinco de largo, ladeados por duas enormes estátuas de guerreiros com suas maças nas mãos subjugando demónios.

– São como o nosso arcanjo São Miguel – compara Zeimoto.

– A grande maioria das gentes dos mosteiros pertence à nobreza, anda de cabeça e barba rapadas, para mostrar que abandonou o mundo. Os bonzos vivem em celibato, abstêm-se de carne e peixe, comendo apenas arroz, legumes ou ervas. Servem no seu templo, ensinando as crianças que estudam nos mosteiros até à idade de catorze anos.

Cruzam-se sem cessar com religiosos em vestes pretas, roxas, pardas ou amarelas que levam nas mãos fios de contas, como rosários. Durante a sua estadia, Fernão haveria de assistir algumas vezes às suas rezas e cantares em coro, com umas composições muito antigas em que respondiam uns aos outros em verso, com grande repouso e maior aparato, sobretudo à meia-noite e ao nascer do sol, quando cantavam durante uma hora, melhor do que os monges de Portugal ou Espanha às suas matinas.

Tadashi Shuza é um incansável professor, sente prazer em ensinar os tenjikujins, palavra que o escolar Wang Zhi e os próprios bárbaros pronunciam como chenchicogins e ele acaba por adoptar para melhor se fazer entender. Dos quatro estranhos visitantes, Murashukusha é o mais curioso e interessado, fazendo-lhe perguntas num arrazoado em língua do Grande Ming assaz compreensível, parecendo entender bem tudo o que se lhe diz. Resolve continuar a lição e dar aos bárbaros cabeludos algumas noções de religião.

– Ali podeis ver o templo do deus Susanoo, um dos três filhos do divino casal Izanami e Izanagi, procriadores não só da maior parte dos deuses como da natureza no mundo. É o irmão mais novo de Amaterasu, a Grande Deusa que ilumina o céu, cujo trineto foi Jimmu-tennô, o primeiro imperador do Japão. Susanoo foi expulso de Takamagahara, a Planície do Alto Céu, residência dos deuses celestes, por causa das suas selvajarias. Desceu até à província de Izumo, ao país subterrâneo dos limbos, matou a serpente gigante de oito cabeças, salvando a princesa Kushinada e, desposando-a, tornou-se rei do Nenokuni, o País das Raízes. A filha de ambos é Suseri, esposa de Ookuninushi-no-mikoto.

Fernão acaba por perder o fio à meada, emaranhado nos estranhos nomes e na pronunciação diferente daquela que se habituara a ouvir na China. A lenda era bonita, porém aqueles pagãos estão mesmo a precisar de quem lhes venha pregar a verdadeira fé, lhes salve as almas, o que até nem deverá ser muito difícil aos missionários por serem os japões uma gente afável, esperta e de muita polícia.

– O senhor de Tanegashima é ainda muito moço – diz, para mudar de assunto. – Como chegou ele ao poder, se o seu pai, o anterior daimyō ainda está vivo?

O bonzo sorri, apreciando a pergunta.

– Shigetoki foi o décimo terceiro daimyō de Tanegashima, mas sendo mais dado à caça ou aos luxos do que à governação, quis construir um grande palácio, forçando os seus vassalos a um trabalho tão constante e duro que eles se revoltaram e foram queixar-se a Izumu Tokinori, o ministro seu irmão, para que o admoestasse. Shigetoki recusou-se a ouvi-lo, acusou-o injustamente de traição. Sentindo-se ameaçado, Tokinori fez um grande levantamento de gente e, há cerca de seis meses, com a ajuda de mais de duzentos soldados, comandados pelo general Shigenaga, senhor da ilha Nejime, avançou contra o irmão. Para evitar hostilidades, Shigetoki foi refugiar-se em Yakushima, com umas dezenas de servidores, deixando a defesa do castelo entregue a Naotoki, o seu filho de quinze anos. Quando Shigenaga atacou o castelo, o príncipe defendeu-se valentemente, com a ajuda de alguns nobres e apenas cinquenta soldados, matando muitos inimigos, embora à custa de pesadas baixas. Naotoki foi ferido, mas um leal samurai salvou-o, levando-o às costas para fora da cerca. Vendo-se sem gente e sem socorro, o príncipe enviou uma mensagem ao general, dizendo-lhe que as suas hostes de defesa eram fracas, estavam exaustas, por isso ele aguardava o seu recado, no templo de Myōkuji, para cometer seppuku e morrer com honra.

– Como logrou escapar? – pergunta Fernão, sabendo como naqueles mundos dificilmente se poupava a vida aos vencidos na guerra.

– Shigenaga admirou a valentia, o alto espírito de Naotoki e mandou dizer que não lhe tinha rancor. Por que razão haveria ele de morrer? O general apenas pretendia castigar Shigetoki, que se afastara do caminho do bem e fizera sofrer o seu povo. A partir daquele momento o tirano podia viver separado do filho ou, se os maus conselheiros fossem banidos, era seu desejo que eles vivessem juntos, para que o príncipe tomasse conta do pai, de modo a impedi-lo de cometer mais crimes. Então, Naotoki tornou-se daimyō de Tanegashima, com o nome de Tokitaka e os títulos que lhe são próprios. Agora basta de prática porque chegámos ao nosso destino.

As casas são as maiores do lugar, rodeadas por um jardim ainda mais belo do que os da China, com grandes invenções de pedras, árvores e flores de diferentes espécies, mais parecendo obra de artífices do que fruto da natureza. Continuava por um parque com muitas fontes, um lago e coutadas a perder de vista.

A porta de entrada, de madeira ornamentada e pintada, dá acesso a um pequeno vestíbulo onde lhes é pedido que se descalcem e lavem os pés, o que causa alguma contrariedade aos portugueses.

– Bofé! Outra vez?! Já me lavei no junco!

– Ind’apanho um resfriado.

– ’Té parece que vimos prá procissão da padroeira de Malaca!

Os tectos no interior dos paços são gradeados e os sobrados das câmaras e antecâmaras por onde passam reluzem de limpeza e estão cobertos de esteiras de palha de arroz, revestidas por uma rede de junco, tão finas como os mais delicados tapetes, que quase dá pejo pisar. Em nenhum aposento há alcatifas, panos de seda ou arrás, porque as paredes são formosos painéis deslizantes, os fusuma, pintados a ouro ou cores naturais, ora representando histórias de feitos antigos dos japões, ora cenas de caça e montaria ou paisagens de lagos e montanhas.