A sala das reuniões aonde os conduzem está virada ao sul e dá para o jardim; é vasta e despojada de ornamentações, com excepção de um recesso ornamental, no vão de uma parede, onde estão expostos um kakemono – uma pintura semelhante a um mapa – com outros objectos de arte. Há ainda dois armários metidos na parede, uma mesa pequena e baixa perto da janela, um estrado de dois degraus onde o senhor atende aos deveres do seu ofício, recebendo as petições dos vassalos e as homenagens dos visitantes, ou se desenfada com a família e os amigos, ouvindo música, fazendo poemas, jogando na mesa de go, um jogo semelhante ao xadrez.
Naotoki e o pai recebem-nos, sentados sobre os joelhos no estrado, acompanhados pelas esposas, concubinas e outras damas da família, trajadas com belas roupagens de seda, umas de cabeleira postiça, outras com os cabelos soltos pelos ombros até ao chão, tão negros e brilhantes de óleo como os seus dentes de azeviche, a contrastar com a brancura do rosto pintado e a flor rubra dos lábios em botão. Fora do estrado, sentados sobre os calcanhares, alinham-se em perfeita ordem os principais fidalgos, trajados com ricos quimonos de cerimónia, imóveis e de rostos impenetráveis como estátuas de madeira pintada.
A embaixada presta-lhes homenagem com infindas zumbaias e Wang Zhi entrega-lhe o presente, que é recebido com muitos agradecimentos e manifesto prazer. Terminada a cerimónia, o necodá pede permissão para lhe apresentar as amostras da fazenda que traz, segundo fora comunicado ao mensageiro que na véspera lhes levara as provisões ao junco.
– Enviei recado aos principais mercadores da terra para virem tratar contigo do preço de toda a fazenda e dos direitos que tens de pagar. Aí os tens.
Os tratantes entram na sala e, depois das saudações devidas aos senhores, apreciam as mercadorias que os tenjikujins trazem por amostra e assentam em tudo o que há mister para o negócio se fazer a contento de todas as partes.
– Amanhã, necodá – diz Tokitaka ao capitão –, já poderás guardar as tuas fazendas numa casa que te dou para os tratos com os nossos mercadores. E poderás aposentar-te com toda a tua gente no templo de Jionji, até ao dia da vossa partida. Os bonzos estão à vossa espera.
Zhi e toda a comitiva agradecem efusivamente a bondade do príncipe, contudo daimyō já não os ouve. Perscruta os rostos dos nanbanjins, ansioso por lhes fazer mais perguntas sobre as terras do outro lado do mundo, cuja existência até então ignorara. Apesar de ser o senhor de doze ilhas com muitos vassalos, pouco conhecia do mundo; se bem que o pai ou os seus conselheiros lhe dissessem que nenhuma nação era mais poderosa, bela, cultivada e rica do que a sua, ele desejava muito conhecer outros lugares além de Tanegashima. Não pode desperdiçar a ocasião de obter esse conhecimento que lhe darão as histórias das suas vidas, pelo que manda o bonzo Shuza sentar-se junto dos quatro portugueses acocorados respeitosamente na sua frente, a fim de lhes servir de língua na dupla interpretação.
– Os chins e léquios dizem que a nação Pu-Li-Du-Jia é muito maior, tanto de terra como de riqueza, que todo o império Ming. Isso é verdade?
– É sim, meu senhor – concede Zeimoto, com voz segura, para não desfazer o crédito que o daimyō tem da pátria portuguesa.
Os três amigos haviam acordado entre si que se Naotoki fizesse perguntas embaraçosas, cujas respostas verdadeiras pudessem contribuir para o deslustre do Portugal e do seu rei no Oriente, tratariam de as embelezar com ajuda de algumas coisas fingidas ou aumentadas.
– Certificaram-me também que o vosso rei subjugou, por conquista de mar, muitas partes do mundo. É certo?
– É verdade, daimyō Tanegashima Tokitaka – confirma Borralho. – El-rei de Portugal é senhor de muitas terras de África, Arábia e Índia, além de um imenso território chamado Brasil.
Quando o intérprete termina a tradução, o príncipe fica por momentos em silêncio, como pasmado.
– Afirmaram-me ainda que o vosso rei tem mais de duas mil casas cheias de ouro e prata até ao telhado – diz por fim. – É tão rico como me dizem?
Fernão responde com muita humildade:
– Sendo o reino em si tamanho, nobre senhor, com tantas terras, povos e tesouros, não é possível dar-vos a certeza desse número.
O diálogo prolonga-se por mais de duas horas, com os portugueses numa grande agonia de cãibras e dores nas pernas, por estarem sentados sobre os calcanhares. Por fim, Tokitaka despede o necodá e com o seu séquito e, com um anseio que ressuma na sua voz e se perde na traslação do língua, roga aos tenjikujins:
– Quedai-vos esta noite em minha casa, pois não me canso de vos perguntar cousas do mundo de onde vindes. Amanhã de manhã, mandarei dar-vos umas casas junto da minha para vossa pousada. Estareis mais a gosto aqui do que no mosteiro, por ser este o melhor lugar da cidade.
Fernão revê-se no moço príncipe, quando, com a mesma idade, embarcara pela primeira vez à aventura e para fugir à morte, movido pelo mesmo desejo de conhecer outros lugares, essa ânsia do Longe e do Mistério que o tinham trazido além da Índia, até àquele arquipélago desconhecido de quase todas as nações do mundo. O favor de Tokitaka honrava-os e avantajava-os em relação ao bando de Wang Zhi, por cujo rosto perpassa uma sombra de inveja, logo dissimulada por sorrisos corteses. Apercebendo-se do seu despeito, sente-se aliviado quando eles partem, por fortuna antes de o daimyō convidar os portugueses para comerem com ele.
É imponente o cerimonial do serviço das iguarias, acompanhadas de muita música, tanto de vozes como de instrumentos, que parece arrebatar os japões mas arranha os ouvidos dos portugueses, de tal modo que a duras penas dominam o desejo de fugir. As representações e danças causam-lhes assombro. O repasto estende-se por muitas horas, à maneira dos chins e, tal como nas ceias do monteo, a comida é servida em mesinhas baixas, uma para cada conviva, finamente lavradas com embutidos de ouro, a escusar toalha ou mantel.
Os manjares são pescado cru, caça, aves e marisco, acompanhados de legumes, de tofu ou aletria, vindo muitas das iguarias já cortadas, armadas em pirâmides de mais de um palmo de alto, borrifadas de ouro, entressachadas com uns pequenos ganchos de cipreste, tão bem concertadas que fazem os portugueses soltar exclamações de pasmo.
– Parecem ramalhetes de flores.
– Cousa maravilhosa de se ver!
– E as aves? Como se estivessem vivas.
Essas vêm inteiras, com os bicos e as patas douradas para maior primor, que os japões desfazem com os dois pauzinhos, apartando com tal perícia os ossos e também as espinhas aos peixes, sem deixar cair migalha, que maravilham os visitantes. Apesar do tempo passado na China e nos juncos com as chusmas chins, à excepção de Fernão, os portugueses manejam desajeitadamente os delicados objectos sob o olhar complacente ou divertido dos outros comensais, procurando colher e levar à boca um ou outro pedaço das viandas que lhes ficam mais perto, arrenegando da sua sorte, mas sem se atreverem a tomar a comida com as mãos. Os parentes do daimyō são ainda mais corteses e prolixos do que os chins nos cumprimentos da mesa.
– Tão só para tomarem uma taça de chá cumprem com oito leis diferentes de cortesias! – observa Zeimoto, semicerrando os olhos de impaciência.
– É uma gente de muita polícia, engenho vivo e saber natural. – murmura Borralho com um suspiro de desespero. – Não devemos escandalizá-los.
– Sem dúvida – volve Fernão, olhando disfarçadamente para a sua esteira e sorrindo de alívio ao vê-la limpa.
Tokitaka quisera recebê-los com muita honra e usara nesse recebimento o seu tesouro mais precioso, que não era ouro, rubis ou pérolas, mas louça e apetrechos antigos para o serviço do chá. Embora a bebida fosse estomacal, o andarilho português não acha merecedoras da valia que lhes dão a panela de cobre para ferver a água, a trempe de ferro onde a põem ao fogo, a caixa de guardar a erva, o pote de louça onde se deita a tisana ou as escudelas de beber. Shuza explica-lhe que aquelas peças são feitas por mestres antigos e os púcaros de barro, do tamanho dos bebedouros que, em menino, punha nas gaiolas de pintassilgo, custam ali uma verdadeira fortuna, sendo estimados como património precioso da família. Sempre de olho posto nas novidades e nos tratos, apercebe-se de que os japões desconhecem o açúcar, pois nada do que tinham comido era doce, tirando a doçura própria de alguns frutos, uma falha que os portugueses poderiam colmatar no futuro.