Findo o serão, Tokitaka manda agasalhar os tenjikujins em casa de um mercador muito rico, que os banqueteou largamente durante o tempo que pousaram com ele168.
168 Peregrinação, capítulo CXXXIII.
IV
O destino nunca favorece quem não mede as consequências
(japonês)
Tanegashima Kafu, a Crónica da Família Tanegashima:
Havia dois chefes entre os mercadores, um chamado Murashukusha e o outro Kirishita da Mōta. Tinham na sua posse um objecto de duas ou três shaku169 de comprimento. Quanto à forma, era oco por dentro, por fora direito e muito pesado. Em tudo mais cavado, tinha em baixo um remate maciço, ao lado um buraco – o caminho do fogo. Este objecto não podia comparar-se a nenhum outro.
Quanto ao seu manejo, punha-se dentro myoyaku (pó milagroso) e juntava-se um pequeno projéctil de chumbo. Prendia-se um disco branco na orla de uma rocha e o atirador, com o objecto na mão, endireitava a sua postura e fechava um olho, acendia o fogo pela abertura e o pelouro acertava sempre em cheio no alvo. Havia um clarão como de relâmpago e o ribombar de um trovão, tão assustador que todos ficavam ensurdecidos.
Este objecto pode fazer uma montanha de prata desmoronar-se ou atravessar uma parede de ferro. Num conflito, um homem pode atingir um vizinho e tirar-lhe a vida no mesmo instante. Desnecessário será dizer que isto é válido também para o veado que destrói o arroz acabado de plantar. São incontáveis as maneiras como este objecto pode ser usado no mundo.
No dia seguinte, Wang Zhi desembarcou para levar a fazenda às casas que o Naotoki lhe tinha cedido, onde vendeu toda a mercadoria em três dias e com enorme lucro, sobretudo as canas muito usadas pelos homens para ajudar a caminhar ou apenas por vaidade, às quais os portugueses chamavam bengalas, uma alusão à sua proveniência do golfo de Bengala, o mesmo acontecendo aos abanos das ilhas de Léquios a que davam o nome de leques. O corsário chim admirava-se de ver cada vez mais palavras destes bárbaros do sul adoptadas pelos naturais de todas as terras onde eles faziam os seus negócios, principalmente quando se tratava de produtos nunca antes vistos.
– Por minha fé, os japões pagaram-me as mercadorias pelo preço que lhes pedi, sem má cara ou regateio – confessou a Pinto. – Só com esta pouca fazenda, avaliada em dois mil e quinhentos taéis de prata, consegui mais de trinta mil! Fiz tanto proveito que fiquei restaurado da perda dos vinte e seis navios que a armada do Tuão me tomou. Ora, se os tivesse, imaginem quanto não lucraria! E vós também, pois todo o vosso se perdeu com o junco do meu sobrinho. A esta hora seríamos todos ricos. Ai, quanto me dói que a fazenda seja tão pouca!
Pinto, Borralho e Zeimoto, devido às desinteligências no grupo dos portugueses, não tinham fazenda para tratos, embora esperassem receber uma boa compensação pelo seu trabalho na defesa do junco do corsário. Nos cintos com bolsas que traziam sempre presos ao corpo por baixo das roupas, guardavam quase intacta a prata oferecida pelo rei dos tártaros, de que contavam aplicar uma boa parte no resgate de algumas mercadorias, antes de partirem para Malaca. Com pousada e boa mesa de graça, gastavam o tempo a passear, visitando os majestosos templos dos seus pagodes, cujos bonzos acudiam a recebê-los com mostras de grande prazer, chamando os seus letrados para praticarem com eles em língua chim e fazerem a dupla interpretação para os restantes.
Começara o Outono, os áceres refulgiam em esplendores de vermelho, laranja e ouro, como se a floresta fosse uma imensa colcha de brocado, lavrada com aves de mil cores. Maravilhados por esta beleza nunca vista, os portugueses desenfadavam-se no parque do daimyō, a pescar no ribeiro e nos lagos ou a caçar nos bosques frondosos repletos de boas presas.
– É uma gente muito honesta e asseada – observa Borralho, uma tarde em que se depararam com um grupo de homens e mulheres a banharem-se juntos no lago principal –, mas parece-me de pouca polícia que se banhem assim nus, à vista de quem passa.
– Não é por asseio, mas por serem sensuais e lascivos, que diariamente passam horas nos natatórios e banhos públicos! – Zeimoto estremece de horror pelo excesso da perniciosa prática. – Três ou quatro banhos ao ano, por ocasião dos grandes dias santos ou festas, já avondam, porque se corre perigo de pulmonias, hidropisias e outras enfermidades.
– Contudo, esses mimos não fazem os homens fracos ou adamados, muito pelo contrário, têm um porte orgulhoso e aguerrido – defende Fernão, lembrando-se com saudade do gosto que tomara aos banhos com a doce Meng. – Andam armados desde tenra idade e já vi meninos de oito anos puxarem da espada para se defenderem ou castigarem quem os ofendeu.
Tinham-se internado profundamente no bosque perfumado e desembocam num paul onde pousava uma imensidão tumultuosa de aves de toda a sorte. Zeimoto, que é o melhor caçador dos três e o mais destro, não resiste ao formigueiro que sente nos dedos e, visando cuidadosamente o bando, dispara o mosquete sobre o magote mais cerrado. O estrondo do tiro provoca o terror entre as aves que, todas à uma, se erguem da terra e da água, desfraldando as asas num estardalhaço de gritos estridentes e de penas, cobrindo por momentos o sol e sumindo-se nos ares. No solo, jazem vinte e seis corpos de marrecos, alguns ainda palpitantes de agonia. Uma só munição bastara para fazer aquela carniça.
O estampido faz acorrer muita gente e dois soldados, vendo o efeito do tiro, vão dar rebate a Tokitaka, que a pouca distância do paul assiste ao treino de uns cavalos que acabara de receber. O jovem daimyō que ama as artes militares e aprende o manejo da espada e da lança com um dos melhores mestres do Japão, desejoso de conhecer a novidade dos nanbanjins, ordena que lhos tragam sem demora à sua presença.
Os nobres japoneses são ensinados desde a mais tenra idade a não revelarem por sinais exteriores os seus sentimentos e a manterem nos rostos uma expressão impenetrável, contudo o príncipe, por força da sua juventude, não consegue dominar o espanto ao ver chegar os nanbanjins com dois criados carregados de patos e mais algumas presas, caçadas no bosque sem recurso ao arco ou à lança. Fita com um medo supersticioso os estranhos objectos que os tenjikujins trazem ao ombro, sentindo-se tentado a concordar com os do seu séquito que lhe dizem ser aquele sucesso obra de feitiçaria.
– Furanchisuku, que cousa é essa que tens nas mãos? – pergunta, tendo a curiosidade vencido o receio. – Não se pode comparar a nada que tenhamos visto em nossas vidas.
– É um mosquete, meu senhor – responde Zeimoto entregando-lho para que o examine à sua guisa. – Uma arma para a caça. ou para a guerra.
O bonzo Shuza titubeia e empalidece, incapaz de achar uma palavra equivalente na sua língua àquele nome. Fica-se por arma e, para seu alívio, o daimyō não insiste, perguntando ao outro bárbaro:
– A tua não é igual, Murashukusha, inda que seja parecida.
– Pois não, meu senhor, esta é um arcabuz.
O monge baixa os olhos envergonhado. Ambos os objectos são coisas novas, desconhecidas.
– Podes mostrar-me o que faz? Aqui mesmo. – roga o príncipe, com uma voz ansiosa de menino maravilhado por um brinquedo novo. Domina-se a custo e ordena que lhe tragam um komanaku.