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O komanaku ou cisne é um alvo para tiro ao arco, que os criados correm a armar no terreiro. Zeimoto pisca o olho a Fernão, que lhe dá a sua espingarda, visto o amigo ser o melhor atirador dos três. Com o alvo à distância de cem passos, é um tiro fácil e o português carrega o arcabuz, mete-o ao ombro, aponta, chega-lhe a mecha e dispara. Tokitaka vê um clarão de relâmpago e quase ao mesmo tempo ouve um estrondo tão assustador que ele e todos os do seu séquito tapam instintivamente os ouvidos com as mãos, quedando como petrificados, ao ver o alvo desfazer-se em pedaços. O fumo que sai do cano vela por momentos a cara do atirador.

– Arcabuz – repete, esclarecendo: ­– Uma arma de fogo.

– Teppō! Tubo de fogo. Teppō! – brada o língua, com um sorriso de orgulhoso alívio, por se ter lembrado dessa palavra muito antiga, do tempo da invasão mongol, referida no rolo Mōko-shūraiekotoba às panelas de pólvora e outros engenhos explosivos de arremesso.

– Teppō! – exclama Takitaka. – É um bom nome para tão maravilhoso objecto: Tanegashima Teppō. Com ele até se pode matar homens ou animais. É um tesouro singular, sem igual na terra! – Faz uma pausa e acrescenta com uma ansiedade juveniclass="underline" – Eu cuido que não sou capaz, mas de bom grado aprenderia a disparar.

Fernão e Cristóvão trocam um sorriso cúmplice, comungando do mesmo saboroso pensamento que não podem formular em palavras, nem sequer em português: Cuidáveis que éramos bárbaros e toscos, por comermos com as mãos? Ora vede de quanta ciência essas mãos são capazes, por força do nosso engenho! Limitam-se a responder por acenos e por meio do tçuzzu:

– Se tu, senhor, quiseres aprender o uso da espingarda, nós de boa vontade te ensinaremos os seus segredos.

Tokitaka amadurecera com a experiência de guerra, quando o pai o deixara sozinho a defender o castelo de Ak-ogi do ataque de Shigenaga, por isso, apesar da sua juventude, entendera de imediato que era de armas como aquela que ele necessitava para reconquistar a ilha de Yakushima que o general lhe tinha tomado.

– Vós me ensinaríeis o seu segredo? – pergunta em voz alvoroçada.

– O segredo consiste apenas nisto: antes de disparar deveis preparar o coração e cerrar um dos olhos – responde Zeimoto.

– Quanto a preparar o coração, os sábios antigos ensinaram o nosso povo a fazê-lo e eu aprendi a lição. Se não seguimos o princípio do Céu em acção, movimento e repouso, acabamos forçosamente por errar. A menos que aquilo que quereis dizer com preparar o coração seja algo diferente. Se fechar um olho, não serei capaz de ver bem o que está longe.

– É para a concentração, nobre senhor – responde Fernão, surpreendido com a sabedoria do moço de quinze anos. – Fechar um olho não significa que não se possa ver claramente, mas que se está concentrado para se atingir o que está longe.

Tokitaka exclama para a assistência:

– Isso corresponde ao que Lao Tzu disse: Ver claramente o que é pequeno chama-se claridade. Não é disto que falais?

Zeimoto, vendo a corte pasmada e Naotoki tão maravilhado, diz aos companheiros, em português:

– Se Tokitaka faz tamanho caso das nossas armas é porque até agora, nesta terra, nunca se viu tiro de fogo e não sabem determinar o que seja, nem entendem o segredo da pólvora. Isto pode ser uma boa jogada a favor de uma futura amizade e tratos com os portugueses. Ainda te hei-de ver, Fernão, como feitor de uma feitoria dos japões.

Fez mais três tiros às aves, matou um milhano e duas rolas, arrancando sempre muitos aplausos, exclamações de espanto ou gritos de medo. Terminada a demonstração, Tokitaka monta a cavalo, agarra Zeimoto por um braço, içando-o para as ancas da montada, com grande escândalo dos fidalgos do seu séquito, pondo-se a caminho, seguido por Pinto, Borralho com toda a sua gente a pé. Correndo na sua frente vão quatro porteiros, com bastões ferrados nas mãos, que lançam um pregão ao povo:

– Tanegashima Tokitaka, senhor de nossas cabeças, manda e quer que todos vós honreis e venereis este tenjikujin do cabo do mundo, porque de hoje por diante o faz seu parente, assim como os facharões que se sentam junto de sua pessoa, sob pena de perder a cabeça o que isto não fizer de boa vontade.

A que todo o povo respondia:

– Assim se fará para sempre.

Zeimoto sorri, muito ufano desta pompa mundana, virando a cabeça sorrateiramente para trás a fazer caretas de perraria a Fernão e a Cristóvão, que vão esbofados, a remoer a inveja, resmoneando: De nada se faz um muito, Não perdes pela demora, meu sendeiro, Faz-se da pulga um gigante!.

Chegados ao primeiro terreiro dos paços, Tokitaka desmonta e, sem cuidar nos dois nanbanjins que deixa para atrás, toma o admirável Furanchisuku pela mão, levando-o para comer com ele e dormir em sua casa.

169 Shaku – medida de comprimento que corresponde a 30 cm.

V

Se te queres vingar do teu inimigo, nada faças:

senta-te à sua porta e espera

(japonês)

Yaita-shi Kiyosada ichiry-u no keizu ou Genealogia da família Yaita Kiyosada:

No oitavo mês do Mizumoto U [o décimo segundo ano, da Lebre, mil quinhentos e quarenta e três], um navio nanbansen arribou à praia de Nishinomura. Traziam teppō e deram dois de presente aos senhores da ilha. Os senhores ficaram extremamente felizes com o maravilhoso objecto que receberam de uma terra estrangeira e Kiyosada foi mandado, com o seu aprendiz, estudar a técnica do seu fabrico. Kiyosada pensou que os tenjikujins até podiam ser honestos, mas ele não se atreveu a ir ter com eles. Achou melhor enviar a filha ao capitão do navio, Murashukusha, com o fito de se virem a casar depois de um dia de amizade e então ele poderia aprender a fazer os teppō.

A sua filha Wakasa nasceu no décimo quinto dia do quarto mês do Hinoto [o sétimo ano, do Porco] da era Taiei [mil quinhentos e vinte e sete].

O Festival do Crisântemo tinha lugar no nono dia do nono mês e Tanegashima rescendia com o perfume das flores que eram também um festim para os olhos, todavia a maior festa para o coração do jovem Tokitaka consiste em observar os três nanbanjin a caçarem com as mortíferas teppō no seu parque. Vendo Furanchisuku e Murashukusha a acercarem-se com muitas pombas e rolas mortas, cisma em como tudo poderia ter sido diferente, no seu confronto com o general Shigenaga, se então possuísse umas dezenas daquelas armas de fogo. Com amargura recorda o poema de um autor desconhecido sobre a guerra fratricida,

Um pássaro com

um só corpo mas

dois bicos

picando-se

até à morte.

Sem a ajuda do pai e com a diminuta hoste de defesa do castelo, não pudera fazer frente ao agressor, mas, se conseguisse obter dos tenjikujins os segredos do fabrico das teppō e do my-oyaku – o pó mágico que com o seu estrondo levava a morte ao inimigo – mandaria fazer um bom número delas, adestraria no seu uso uma tropa de elite e lançar-se-ia à reconquista da ilha de Yakushima, tomada pelo seu tio Tokinori, a fim de vingar a passada humilhação e restaurar a sua honra. Tinha de possuir pelo menos uma, para servir de modelo aos seus armeiros e estava disposto a pagar qualquer preço que os tenjikujins lhe pedissem pelo precioso objecto.

Fernão e Zeimoto prestaram-lhe as devidas cortesias, trocando entre si um sinal de entendimento quando, à vista das espingardas, os olhos do daimyō luziram de cobiça, iluminando-lhe o rosto que pretende ser impenetrável. Tokitaka corresponde às saudações com muita afabilidade, sentando-se com eles no chão do pequeno pavilhão coberto de tatamis onde os criados lhes servem chá com alguns pratos de salgados para a merenda. Sem se importar com a estupefacção e censura que por momentos desmancham a postura impassível dos seus ministros, o daimyō serve-lhes a bebida com a sua própria mão; os dois portugueses agradecem a honra, fazendo o kotao, ao modo chim, curvando-se para tocar com a testa três vezes no chão.