– Meu Senhor, nunca poderemos agradecer-te o bastante pelas bondades e honras que nos tens feito desde que arribámos à tua ilha, apesar de sermos chenchicogins e sem nada de nosso – diz-lhe Zeimoto, aproveitando o ensejo para pôr em obra o que tinha decidido com Fernão, durante a caçada. – Creio, porém, Alteza, que em nenhuma coisa posso melhor satisfazer-te ou dar-te mais gosto do que oferecer-te este mosquete.
Tokitaka olha-o, incrédulo, mas já Fernão se curva para acrescentar:
– E a mim, meu Senhor, me farás grande honra se aceitares este meu arcabuz, para que possas aprender todos os segredos dos teppō.
De joelhos, curvam-se por três vezes e voltam a sentar-se sobre os calcanhares, um hábito adquirido a custo, mas que, com o uso, já fazem quase como coisa natural.
– Dais-me os vossos teppō, Furanchisuku? – pergunta com a voz embargada pela emoção, como se os seus deuses lhe tivessem concedido o milagre que rogara sem esperança de alcançar. – São peças de muito preço, Murashukusha! Com uma gente assim generosa, não me custa a crer que o rei de Pu-Li-Du-Jia seja esse poderoso monarca, senhor de muitos mundos, como me contastes. Estimo estes presentes mais do que todo o tesouro do Grande Ming!
A uma ordem sua, o secretário entrega a cada um dos portugueses uma bolsa com mil taéis de prata, que eles fazem menção de recusar por delicadeza, para logo as guardarem, contentes de verem como a sua estratégia, para estabelecerem laços de amizade mais estreitos com o senhor de Tanegashima, dera melhores frutos do que contavam receber.
– Agora, tereis de me ensinar o segredo do my-oyaku, o pó mágico, porque sem ele os teppō não passam de um pedaço de ferro desaproveitado.
Os portugueses entreolham-se apreensivos, sem saberem o que dizer. Shuza contara-lhes que os mongóis haviam aprendido com os chins o segredo da pólvora e tinham-na usado nas bombardas, ao invadirem o Nippon, causando-lhe grandes estragos. Embora moço, o senhor de Tanegashima era um príncipe inteligente e bem instruído nos assuntos de guerra; apesar de nunca ter visto uma espingarda, não se deixaria enganar com qualquer patranha, como se fosse índio do Brasil ou cafre da Guiné, nem eles desejavam fazê-lo.
– Alteza – confessa Zeimoto, com muita humildade –, nós sabemos manejar as espingardas, desejamos muito ensinar-te a disparar o mosquete e o arcabuz, porém, não somos armeiros e nunca fizemos o pó mágico.
– Conhecemos os materiais da sua composição, que são o enxofre, o carvão e o salitre, mas pouco sabemos quanto à arte de moer, peneirar e misturar o pó.
Tokitaka inclinou-se para a frente como se quisesse dizer-lhes um segredo.
– Há muito enxofre, carvão e chumbo em Tanegashima, só precisamos de importar o salitre.
Eis uma boa mercadoria para os tratos com os japões, pensa Fernão, sempre de olho no negócio, tratarei de comprar na China e no Sião todo o salitre que puder e virei vendê-lo aqui.
– E para o fabrico dos teppō – prossegue o Naotoki, com alvoroço – temos boa madeira nas florestas e a nossa ilha é tão rica em ferro que as suas costas são conhecidas por kuroi sunahama, as praias de areia negra! Por ora, comprarei toda a pólvora que o capitão Goh-o me puder vender, para poder exercitar o tiro com as armas que tão generosamente me haveis presenteado. Comecemos sem mais tardança a minha aprendizagem.
Abandonara quase por completo a sua compostura de daimyō, e sorria de felicidade, vibrando com a antecipação do momento em que disparará o seu primeiro tiro, enquanto ordena que lhe tragam alvos para o exercício. Zeimoto dá início à lição, fazendo uma breve enumeração das diferenças entre as duas armas, tarefa assaz difícil porque nem ele nem os tçuzzus conhecem nas línguas chim e japoa, palavras que correspondam aos termos portugueses.
– O mosquete, meu senhor, é uma arma mais recente do que o arcabuz, de cano longo, mais pesada e certeira, com o dobro do alcance, embora mais difícil de manejar. Ambas se carregam pela boca e disparam por meio do morrão que aqui vês.
Mostra-lhe a longa mecha de cânhamo entrançado, embebida numa solução de salitre que ardia lentamente, cuja ponta estava presa à serpentina na coronha das armas. Fernão coloca sobre uma mesa o seu polvorinho ainda cheio de pólvora, a bolsa com as esferas de chumbo e prepara o arcabuz.
Troca um olhar com Zeimoto que encolhe os ombros, como a dizer-lhe que ignora quanto, de tudo o que falara, fora compreendido pelo Naotoki, a quem entrega o mosquete. Prossegue com a lição, ajudado pelo companheiro, numa mistura de português e chim, com recurso a uma animada pantomima de gestos e sons, para suprir as dificuldades da língua:
– Primeiro, Alteza, deita-lhe pelo cano uma medida de pólvora, digo, de my-oyaku para encher a caçoleta (essa pequena câmara redonda na coronha). agora a bucha de estopa. soca-a bem, assi mesmo, com a vareta da forquilha. Muito bem! Mete ora o pelouro, que deve correr folgadamente pelo cano, e uma segunda bucha. calca-a bem, isso assi, com a vareta. Tal e qual, meu senhor, até parece que usaste um mosquete toda a tua vida!
Tokitaka segue atentamente as instruções, rindo-se com os incitamentos que o tenjikujin lhe fazem na língua chim e ele consegue perceber. Agradece os aplausos dos numerosos assistentes que, todavia, mantêm os rostos impenetráveis, onde só por breves instantes perpassa um lampejo de receio.
– O arcabuz carrega-se do mesmo modo, Alteza – explica Fernão, dando-lhe a arma e o daimyō carrega-a já sem dificuldade, mostrando ter aprendido a lição e recebendo nova salva de palmas.
– Ambas as armas se disparam com o gatilho que faz baixar, por meio da serpentina (esta peça aqui), a ponta do morrão até ao buraco no cano e à my-oyaku na caçoleta (essa mesma!), para causar a explosão e disparar os pelouros. Para maior precisão, meu senhor, deves apoiar o mosquete numa forquilha. Vejo que estás prestes, Alteza, mostrai-me então a vossa pontaria.
– É preciso preparar coração e cerrar um dos olhos – repete o príncipe, enquanto ergue o mosquete à altura do ombro, franzindo a testa num esforço de recolhimento e fechando um dos olhos ao apontar ao alvo.
Os dois portugueses procuram manter o rosto inexpressivo como os japões, apesar da vontade de rir que lhes causa Tokitaka a assumir a atitude de um mosqueteiro, esforçando-se, como um aluno aplicado, por recordar os ensinamentos dos seus mestres. Soa a explosão, o tiro parte, o príncipe oscila e cai de costas, projectado pelo coice da arma, fazendo acorrer os criados e os ministros em pânico. Fernão e Zeimoto erguem-no do solo, igualmente assustados pelas consequências que lhes podem advir do acidente. Com um sorriso de pasmo, o daimyō pergunta-lhes:
– Acertei?
Trazem-lhe o alvo. O pelouro de chumbo fizera um buraco na orla esquerda do círculo.
– Acertaste, meu senhor!
– E logo ao primeiro tiro! – bradam os dois portugueses, batendo-lhe as palmas, secundados por todos os presentes, aliviados de o verem são e salvo. O príncipe solta uma breve risada, disfarçando as lágrimas de orgulho que teimam em assomar-lhe aos olhos, toma o arcabuz das mãos de Fernão, assume a postura de arcabuzeiro e prepara-se para disparar.
As duas armas de fogo passam a ser o gosto e passatempo do Naotoki, cuja felicidade não conhece limites quando recebe lições de tiro ao alvo dadas pelos dois tenjikujins. Com elas se exercitava, desde manhã até à noite, de tal modo que não tardou a exceder os seus mestres em perícia, com os desacertos dos primeiros tempos a converterem-se em tiros certeiros, conseguindo por fim, em cem disparos, acertar cem tiros no alvo.
Os seus ministros, decerto instigados pelo humilhado Shigetoki, determinaram favorecer os desejos de desforra de Tokitaka e mandaram chamar o mestre armeiro, ordenando-lhe que tomasse aquelas duas espingardas por modelo e aprendesse com os tenjikujins a fazer outras da mesma sorte.
VI
Tropeça-se sempre nas pedras pequenas, porque as grandes logo se enxergam
(japonês)
Do que toca às mulheres, e de suas pessoas e costumes: