Выбрать главу

– Em Europa a suprema honra e riqueza das mulheres moças é a pudicícia e o claustro inviolado da sua pureza; as mulheres de Japão nenhum caso fazem da limpeza virginal nem perdem, por a não ter, honra nem casamento.

– Em Europa, o encerramento das filhas e donzelas é muito grande e rigoroso; em Japão as filhas vão sós por onde querem por um dia e muitos, sem ter conta com os pais.

– Entre nós não é muito corrente saberem as mulheres escrever; nas honradas de Japão se tem por abatimento as que o não sabem fazer.

– As de Europa perfumam os cabelos com cheiros odoríferos; as Japoas andam sempre fedendo ao azeite com que os untam.

– As de Europa raramente usam de cabelos estranhos ajuntados aos seus; as Japoas compram muitas cabeleiras que vêm de veniaga da China.

– As da Europa prezam-se das sobrancelhas bem feitas e concertadas; as Japoas as tiram todas com tenaz sem lhe ficar um só cabelo.

– As de Europa é defeito parecerem-lhe muito as posturas e afeites do rosto; as Japoas, quanto mais alvaiade põem, tanto o têm por maior gentileza.

– As de Europa trabalham com artifício e confeições por fazer os dentes alvos; as Japoas com ferro e vinagre trabalham por fazerem a boca e os dentes pretos.

– As de Europa chegam-lhes as mangas até o colo da mão; as Japoas, chegam-lhe até meio braço e não têm por desonestidade descobrir os braços e peitos.

– Entre nós andar uma mulher descalça ter-se-ia por doida ou desavergonhada; as Japoas altas e baixas a maior parte do ano andam sempre descalças.

(Tratado do Padre Luís Fróis170)

Há muitas gerações que os Yaita serviam fielmente os senhores de Tanegashima, sem jamais discutirem ou recusarem uma ordem e Yaita Kinbee Kiyosada não seria o primeiro a fazê-lo. Apesar de ser um mestre na arte de forjar espadas, nada sabia do fabrico de armas de fogo, sendo os dois teppō do seu senhor as primeiras que vira em toda a sua vida, contudo, preferia morrer a confessar a sua ignorância ou imperícia para reproduzir os misteriosos objectos. O sapo do poço não conhece o oceano, pensou amargurado. Se não desse conta do recado, só lhe restaria uma saída para salvar a face e poupar o nome da família à desonra: o seppuku.

Diante do daimyō, dos seus ministros e dos tenjikujins, disfarçara o embaraço, mandando os seus aprendizes Makise, Hirase e Ishihara fazerem desenhos dos dois teppō com toda a minudência e ele próprio copiara as partes mais ardilosas, sob o olhar cioso de Tokitaka que, quando não estava a exercitar-se com os artefactos, os guardava em lugar secreto nos seus aposentos como tesouros da família, não os confiando a ninguém. Kiyosada ouvira com a maior atenção as instruções sobre o seu uso, tomara nota de tudo o que pudera entender do arrazoado do amo. o que, por sua má fortuna, fora bem pouco.

As armas não pareciam ter grandes diferenças entre si, tirando o cano de ferro, o caminho do fogo; com dois a três chaku de comprimento, direitas, cavadas por dentro, mas muito pesadas, a coronha de madeira de cerejeira era mais curva numa do que na outra, com um remate maciço por baixo. Embora nenhum dos seus acessórios, só por si, lhe tivesse parecido de difícil execução, Kiyosada regressara a casa com o coração pesado de angústia, por não lhe darem ocasião de desmontar a arma para a estudar por dentro. Suspeitava de que aqueles objectos tão poderosos como mortíferos fossem obra de feitiçaria dos tenjikujins, escondendo no seu âmago de madeira e ferro um sortilégio capaz de o amaldiçoar ou destruir.

Guardara-se de partilhar essas desconfianças com os aprendizes, pois o não falar é uma flor, como costumava dizer à sua filha Wakasa, moça alegre e palradora. Lembrara-lhes, pelo contrário, a grande honra que lhes fora concedida de serem os primeiros do seu mester a criarem as extraordinárias armas, um feito que, se fossem bem sucedidos, lhes haveria de trazer fama e fortuna.

Kiyosada começara a trabalhar afincadamente num tronco de cerejeira para criar a coronha, conseguindo-o após alguns dias de trabalho, muita perseverança e uma boa quantidade de madeira desperdiçada. O sucesso aligeirara-lhe o coração, a ponto de trautear um poema, coisa que os seus aprendizes não tinham memória de o ver fazer. Com as ferrarias, todavia, não tivera a mesma sorte, consistindo cada peça num verdadeiro quebra-cabeças.

– O macaco também cai da árvore! – suspirava, desconsolado, ao fim de um dia de luta na forja. – Até um mestre experimentado pode errar.

Durante os dias seguintes, os aprendizes sofreram-lhe com humildade as censuras aspérrimas e os anexins que ele lhes lançava com mais amargura do que ira.

– Escondes a cabeça mas não tapas o rabo, Makise – vociferava, mostrando-lhe como só em parte resolvera a dificuldade. – Não contes com a pele antes de apanhar o animal – lançava a Hirase, arrefecendo o júbilo do moço ajudante que antecipara a vitória ao ver o gatilho, porquanto a peça não encaixava na coronha.

Embora admoestasse os aprendizes, era ao mestre que ele recriminava pela inépcia e ignorância. Por fim, conseguira encaixar todas as peças do quebra-cabeças, todavia, só com muito esforço lograra fechar a coronha na parte inferior e temia que a teppō se estilhaçasse com a explosão da pólvora, se o encaixe não fosse assaz forte para a suportar. Apesar do defeito, Kiyosada impava de orgulho por ter sido o primeiro armeiro do Japão a criar uma tal arma de fogo que parecia mais perfeita do que as originais.

– Tanegashima teppō! – bradara, como se anunciasse o nascimento do filho primogénito e repetira, emocionado: – Tanegashima teppō.

Carregara a arma com a pólvora, conforme o daimyō lhe ensinara, mas Ishihara, o mais velho dos seus aprendizes, não o deixara disparar o arcabuz:

– Em caso de acidente, poderíeis ficar impedido de prosseguir com o vosso trabalho, o que não podemos consentir.

Kiyosada cedera contrariado. Ishihara metera a arma ao ombro, chegara-lhe o morrão que já tinha aceso e disparara na direcção de um balde que estava preso à entrada da forja. O estrondo da explosão que estilhaçou o arcabuz fizera fugir os dois aprendizes, sem olharem sequer para o companheiro que jazia no chão com parte do queixo arrancado e sem dois dedos da mão esquerda.

A caminho de casa, a lembrança do fracasso trouxe lágrimas aos olhos de Kiyosada: – Um cachorro vivo é melhor que um leão morto? – lançou a pergunta, com desprezo pela sua própria covardia, para a lua que pendia do céu como um balão pálido. Por muito que lhe custasse, tinha de admitir a derrota: sem o concurso dos nanbanjins jamais levaria a cabo aquela tarefa. No entanto, não ousava acercar-se deles para lhes pedir ajuda, porque não confiava, nem acreditava que lhe ensinassem de graça o segredo das armas. Que poderia fazer, se não tinha meios de fortuna para peitar os poderosos tenjikujins? Estava num beco sem saída ao fundo do qual o esperava, já desembainhada, a espada do seppuku com que haveria de rasgar o ventre para resgatar a sua honra e a de toda a família.

Imerso nos seus pensamentos só deu por ter chegado a casa, quando os seus olhos angustiados pousaram no belíssimo rosto da filha que o esperava à porta, ansiosa com a sua demora. Kiyosada soube, nesse instante, que Wakasa seria o remédio e a cura para todos os seus males.

Os parentes olham em silêncio para a moça, apreciando-lhe a beleza luminosa dos dezasseis anos e a graciosidade reverente dos gestos com que se ajoelha e lhes serve as iguarias. Sorriem-lhe em aprovação, mas ela mantém os olhos baixos, alheia ao efeito que causa e, findo o serviço, retira-se com a criada, conforme as instruções que a mãe lhe dera, indo em seguida refugiar-se no jardim em busca de conforto para o seu coração assustado.

Longe do ruído da casa, Wakasa deixa-se impregnar pelo perfume das flores, o som da água na fonte, a doce carícia do sol, procurando fundir-se com aquela natureza que, tal como ela, foi aprisionada e disciplinada para atingir a perfeição. Lembra-se do poema antigo que recita como uma prece: a multidão dos deuses olha-me decerto com piedade, porque eu não cometi qualquer pecado171.