Embora nada lhe tenham dito, sufoca-a o pressentimento de que a reunião dos principais membros da família Yaita foi convocada pelo pai por sua causa, em razão de um negócio demasiado grave para ser resolvido apenas por ele. Revê em pensamento a sua conduta nos últimos meses, sobretudo desde que completou os dezasseis anos, mas não acha nada nas suas palavras e acções de que se possa recriminar ou envergonhar. Poderá o seu karma trazer, das vidas anteriores, uma carga tão pesada que a impeça de ser feliz no presente?
Precisa de serenar o espírito para perceber o que se passa. Uma congregação tão numerosa de parentes só acontecia em tempo de guerra – como ela testemunhara meses antes, quando o pai decidira permanecer com o jovem daimyō, em vez de seguir o Senhor de Shigetoki na fuga ou mudar de campo como haviam feito muitos outros samurais –, em caso de morte, como sucedera com a do venerável avô, ou ainda para tratar de um casamento.
Sente-se desfalecer e encosta-se ao tronco da árvore, desafogando o quimono na frente, para aliviar o aperto no peito que lhe corta a respiração. Seria isso? Teriam os pais decidido casá-la, sendo a reunião convocada para apresentarem o pedido e obterem a aprovação para o noivo? As frequentes visitas que o pai fizera, na última lua, ao templo budista de Jionji seriam para consultar os oráculos e tratar da cerimónia? Se assim fosse, quem seria o pretendente? Como filha obediente e respeitadora, teria de aceitar o esposo que o pai escolhesse, no entanto, como a mãe sempre lhe dera liberdade e a encorajara a expressar os seus pensamentos, esperava que, em chegando o tempo de casar, não lhe impusessem um marido contra a sua vontade.
Por outro lado, o momento não lhe parece propício a matrimónios. A vinda dos nanbanjins estilhaçara a harmonia do seu lar, porque o pai não voltara a ter paz desde que o daimyō o encarregara de fabricar as temíveis teppō. Agora, chegava todas as noites a casa de semblante marcado pelo desespero, as costas vergadas como se carregasse um fardo ou tivesse subitamente envelhecido. Quando saía, manhã cedo, depois de uma noite de insónia, parecia uma assombração do mundo dos mortos; a mãe disfarçava as lágrimas e não respondia às perguntas que ela lhe fazia sobre as causas do seu tormento.
O templo visitado pelo pai era pousada dos tripulantes chins do nanbansen e ela ouvira-o mencionar o bonzo Tadashi Shuza que servia de tçuzzu a Tokitaka para falar com os tenjikujins. Sente uma ponta de ciúme do monge e lamenta a sua condição de mulher, porque, sendo bastante conhecedora do idioma chim, se fosse um rapaz, o pai não hesitaria em usá-la como língua.
Embora os Yaita não fossem ricos, pertenciam a um clã de boa estirpe e Asamia, a sua mãe, provinha da família Narahara, uma gente muito letrada, cujas filhas eram educadas para açafatas das senhoras de Tanegashima, estando Asamia ao serviço da mãe de Tokitaka e Wakasa ao da sua jovem esposa. Fora por isso criada com grande primor, tendo as monjas Nichiren por mestras nas artes corteses da caligrafia, da poesia ou da música, aprendendo também a língua do Grande Ming.
Procura sossegar a sua inquietude com o pensamento de que a reunião da família será decerto para tratar do assunto das teppō ou de outro serviço do daimyō e não do seu casamento, coisa de somenos quando cotejada com os deveres dos Yaita para com o senhor de Tanegashima. Nada durava para sempre, nem um mau karma: o Outono acabaria e o Inverno apagaria o fogo das copas dos áceres com o seu véu de neve; logo que chegasse a Primavera, as flores das cerejeiras renasceriam e os dias tristes seriam esquecidos.
Deixou de sentir o sol no rosto, abriu os olhos e estremeceu, não da brisa outonal apesar de soprar mais fresca, mas do movimento das nuvens no céu a desenharem estranhas formações – um sinal ominoso, precursor de más novas. De novo assustada, Wakasa corre para casa a prostrar-se diante do altar dos seus antepassados, rogando-lhes que afastem as sombras que pairam sobre o seu lar.
A criada vem dizer-lhe que o pai quer vê-la e ela obedece prontamente, indo ajoelhar-se do lado de fora da fusuma que divide os compartimentos. Ao ouvir a voz de Kiyosada chamá-la, faz deslizar o painel pintado com delicados motivos de flores e avança de joelhos sobre o tatami, curvando-se com muito acatamento diante dos parentes, cujos rostos fechados, zangados ou tristes lhe confirmam que uma terrível desgraça se abateu sobre a sua cabeça.
170 Tratado em que se contém muito sucinta e abreviadamente algumas contradições e diferenças de costumes antre a gente da Europa e esta província de Japão, feito em Canzusa, aos 14 de Junho de 1585 anos, pelo padre Luís Fróis.
171 Do O Romance do Genji, suma II: 209; S: 246, de Murasaki Shikibu (traduzido, de uma versão inglesa, pela autora) (edição portuguesa, relógio d’Água, 2 vol., 2008).
VII
O dever é mais ligeiro que a pluma e mais pesado que uma montanha
(japonês)
Do que toca às mulheres, e de suas pessoas e costumes:
– Em Europa, vão os homens diante e as mulheres detrás; em Japão os homens detrás e as mulheres diante.
– Em Europa, a fazenda é comum entre os casados; em Japão cada um tem a sua separada e às vezes a mulher onzena com o marido.
– Em Europa, além de pecado, é suma infâmia repudiar a mulher; em Japão dá um repúdio a quantas quer, e elas não perdem por isso honra nem casamento.
– Segundo a natureza corrupta, os homens são os que repudiam as mulheres; em Japão, muitas vezes, as mulheres são as que repudiam os homens.
– Em Europa, pelo rapto de uma parenta se põe toda a geração a perigo de morte; em Japão os pais e as mães e irmãos dissimulam e passam levemente por isso.
– As mulheres em Europa não vão fora de casa sem licença de seus maridos; as Japoas têm liberdade de irem por onde quiserem, sem os maridos o saberem.
– Em Europa, recebem as mulheres os hóspedes alevantando-se em pé; as de Japão os recebem deixando-se ficar assentadas.
– Em Europa, posto que o haja, não é frequente o aborcio das crianças; em Japão é tão comum, que há mulher que aborta vinte vezes.
– Em Europa, depois de criança nacer, raras vezes ou quasi nunca se mata; as Japoas lhe põem o pé no pescoço e matam todos os que lhe parece que não podem sustentar.
(Tratado do Padre Luís Fróis)
Deitada no leito, sem dormir e a soluçar, a noite parecera não ter fim e a madrugada não trouxera consolo às suas mágoas. Por fim, Wakasa deixa de chorar, aceitando o seu destino como uma retribuição exigida pelas más acções que cometera em vidas anteriores, embora sem ter memória delas. Está só, indefesa como a onda que, empurrada por feros ventos contra os rochedos, vem tombar desfeita na areia.
Nunca ousará ir contra a vontade de Kiyosada, tendo sido criada desde tenra idade na crença de que terramoto, trovão, incêndio e pai são as quatro entidades mais temíveis do mundo, porque contra eles de nada serve lutar. Evoca as heroínas dos soga monogatari, os contos de guerra que as Goze cegas vinham cantar nas festas de Ak-ogi ou em casa do senhor de Tanegashima, marcando o ritmo da narração ao som do tambor, como inspiradas por uma visão interior, que lhes dava o poder de comunicar com o mundo invisível e fazer profecias. As contadoras de histórias narravam o infortúnio das mulheres, causado pelas maquinações dos homens e, tal como elas, Wakasa seguirá a via do sofrimento.
A árvore quer sossego, mas o vento não pára de soprar, suspira. Por amor do pai, de Tanegashima Tokitaka e do Nippon, sacrificar-se-á a viver a mais miserável de todas as vidas desde sempre vividas, casando-se com um horrível nanbanjin e viajando para os confins do mundo, abandonando tudo o que sempre amara, como lhe fora predestinado. Graças ao seu sacrifício, Kiyosada aprenderá o segredo das teppō e já não cometerá o seppuku, Tokitaka terá as armas para reconquistar os seus domínios e o império do Sol Nascente ganhará um novo instrumento para combater os inimigos. É uma responsabilidade demasiado pesada para uma pequena formiga como ela, contudo, se com o seu sofrimento alcança o que todos esperam, talvez na próxima existência já nasça num corpo de homem e logre a sua própria salvação.