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O noivo que lhe destinam é o mais letrado, afável e cortês dos nanbanjins, segundo lhe contara a mãe, a modo de consolo. As idas de Kiyosada ao templo de Jionji tinham sido para sondar Tadashi Shuza e pedir-lhe conselho sobre os tenjikujins, a fim de escolher aquele que melhor pudesse servir os seus propósitos: um homem sensível aos encantos de Wakasa, a ponto de aceitar casar com ela e não a fazer demasiado infeliz.

O monge não hesitara em indicar-lhe Murashukusha, que se mostrava encantado com tudo o que via, cuidadoso em não cometer faltas de cortesia, sempre a fazer perguntas para conhecer os usos da terra e esforçando-se por aprender a falar a língua, sendo também de todos os tenjikujins o que melhor se fazia entender no idioma do Grande Ming.

Fukumi, a irmã mais velha de sua mãe, escolhida para nakodo ou intermediária entre as duas partes na concertação do casamento, parecia mais resignada do que feliz com o encargo e não disfarçara o seu mal-estar perante a sobrinha, declarando-lhe as suas premonições contra um matrimónio que não podia agradar aos céus.

– É tão fora dos bons costumes como nunca houve outro em todo o Nippon, desde o princípio do mundo! – repontara indignada. – O nanbanjin não segue sequer a nossa religião e, só por isso, os espíritos dos nossos antepassados hão-de retirar-nos a sua protecção.

Wakasa enxugara o pranto silencioso à manga do quimono e a tia, condoída do seu desgosto, acrescentara em tom mais brando:

– És uma boa filha, o teu sacrifício há-de ter recompensa.

Chegara prestes o dia da consumação do castigo, que outra coisa não era a sua entrega ao estrangeiro, a qual terá lugar no grande junco agora despejado de gente. Vestida com um quimono de Outono de formoso padrão, Wakasa segue de carroça, a caminho do cais, com a tia e a terceira concubina de seu pai, uma filha de camponeses, comprada mais para criada de Asamia do que para consorte. Sente-se gelada como se, numa manhã de rigoroso Inverno, tivesse saído de casa em roupas de Verão.

– E se eu não agradar ao nanbanjin? – pergunta com a voz a tremer, não de medo, mas de esperança. – Ele pode não me querer para sua esposa.

– Que os céus o não permitam! – alarma-se Fukumi. – És mui formosa e isso é meio caminho andado para que te queira, no entanto, deves fazer tudo o que estiver ao teu alcance para lhe agradar. – Faz uma pausa e acrescenta, mais para si mesma do que para a sobrinha: – Ele não se atreverá a recusar-te, depois de eu ter dito ao capitão do nanbansen e seu nakodo, que o Senhor Tokitaka tem grande prazer com este casamento.

Desse mesmo assunto falam os portugueses com o corsário Wang Zhi, porém, em vozes mais acesas e ânimos exaltados.

– Por que hei-de ser eu? Porquê o pobre de mim? – brada Fernão, em freimas. – Acaso é sina minha, isto de sempre me cair nos lombos todos os sarilhos? Ainda não fez três semanas que aqui aportámos e já me querem casar? Mal acabei de sair de uma e logo tratais de me meter em outra? O casamento pesa no muito e descansa no pouco!

– A principal razão é teres sido tu o escolhido pela família da noiva – argumenta Zeimoto, disfarçando o sorriso, para não o agastar ainda mais. – Depois, António da Mota é casado, eu tenho a minha conversada em Liampó e o Cristóvão ainda não se refez da perda de Lijie. Portanto, sobras tu que és solteiro e.

– E vós credes que eu já não sinto nada por Meng? Tenho, por força, de me casar com uma gentia, de rosto caiado de alvaiade e dentes de carvão, para vos livrar de embaraços? O pai da moça só quer saber do fabrico da pólvora e dos arcabuzes, mas como não tem ânimo para nos perguntar, peita-nos com a filha. Puta que o pariu! Pois sabei que não me caso! – E repete, furioso, em língua chim para Wang Zhi entender: – Não me caso!

O rosto do capitão endurece, a sua voz soa fria como a lâmina da espada, em cujo punho enclavinha a mão:

– A ira queima o entendimento, senão veríeis que não casar está fora de questão. Kiyosada é um samurai, o principal armeiro do senhor de Tanegashima, que tudo fará para ter os seus próprios teppō. É o primeiro casamento de uma japoa com um chenchicogin, que se faz nesta nação, uma grande honra que vos concedem. Aceitai essa união porque, sendo vós mercador, os laços com essa família hão-de trazer-vos fortuna nos tempos próximos.

– Mandai dizer ao armeiro, pela alcoveta que trata deste negócio, que lhe ensinaremos a fazer as espingardas, sem que tenha de sacrificar a filha! – insiste Fernão, embora sabendo que está a falar para as orelhas moucas do corsário. – Ademais, escolheram mal o noivo, porque eu não conheço nemigalha do fabrico das armas ou da pólvora, apenas sei usá-las!

– Se os ofenderdes com a vossa recusa – retorque Zhi, como se não o tivesse ouvido –, pagaremos todos pela vossa falta e não mais poderemos volver aqui a fazer tratos, isto supondo que nos deixarão partir, em vez de abrasarem o junco e de nos massacrarem a todos para limpar a sua honra.

– Vossa mercê sabe que o capitão está certo – apoia António da Mota. – O casamento é feito pelos ritos gentios, por isso só terá valor aqui. Quanto à vossa esposa, quando partirmos, podereis deixá-la cá com a família ou levá-la e vendê-la mais tarde em qualquer porto, se a não quiserdes.

– O língua disse-nos que no Japão é frequente dar-se uma filha a alguém para pecar ou ganhar com ela – caçoa Zeimoto. – Sendo formosa, ainda te poderá valer em caso de necessidade, como sucede com muitos dos nossos em Goa, Malaca e outras partes quando a Fortuna não lhes sorri põem as suas bichas a render.

– Cuidais que sou algum alcaguete, para viver à custa de mulheres? – riposta em sanha.

Borralho lembra-lhe com uma ponta de ironia:

– Não costumas dizer que a vida é como cebola que se descasca chorando? Bebe mais umas taças de sake para afogar essas mágoas.

– Quem perde honra por negócio, perde o negócio e a honra – regouga Fernão, ripostando com outro refrão, já vencido.

Depois de beber várias taças de vinho aquecido, sente-se mais reconfortado. Peregrinava há já alguns anos pelo Oriente, tendo sofrido grande soma de reveses e tormentos, o que lhe permitia reconhecer de imediato uma situação delicada ou perigosa nos tratos com povos tão ciosos da sua honra que bastava a mais pequena acendalha para desencadear um incêndio de paixões que só terminaria quando tivessem lavado as ofensas com traição e sangue. Assim, não faria nada que pudesse pôr em risco a sua segurança e a dos cem companheiros, sujeitando-se a mais um desses entremezes com que os Fados o brindavam, de tempos a tempos, para o atormentarem.

– E vêm entregar-me a donzela, antes do casamento? – pergunta em língua chim; apesar de já ter muito visto, custava-lhe a crer no pouco valor em que se tinha a castidade das moças naquele lado do mundo.

– É um bom costume esse de dar a provar o doce, a ver se o freguês gosta.

Zeimoto não resistira a fazer o chiste brejeiro para desanuviar os ares carregados, arrancando uma gargalhada a Borralho e a Mota; Zhi arreganha os lábios num leve sorriso, por não entender o alcance da graça e Fernão mantém a cara de ferrabrás.

– Se assim é, ainda estou a tempo de arrepender-me e de dar o dito por não dito. – lança-lhes mordaz.

– De modo algum! – volve-lhe o corsário e a sua mão pousa displicente no copo da espada. – Sereis um noivo exemplar, meigo e galante como só os portugueses sabem ser, segundo afirmam as jaus, as chins, as índias e outras fêmeas do resto do mundo. No junco estareis a sós, mais à vossa guisa do que no templo, apenas com uma serva para preparar a comida e atender à vossa noiva, depois de sairmos. Passareis o dia e a noite juntos, a fim de vos conhecerdes, embora sem o auxílio de um língua.