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– Esta província foi a primeira a ser assaltada, faz já alguns anos – conclui Seixas. – As hostes do Granhe são como pragas de gafanhotos, ávidos e ligeiros, atacam um lugar e logo partem para outro; porém, quando acabam de passar, não fica um grão no campo, nem uma galinha na capoeira e a fome faz fugir os sobreviventes dos ataques. Podemos atravessar com alguma segurança, porque já não há nada para roubar nestas terras. E amanhã entraremos na parte da Abássia que ainda está sob o domínio do Preste e tereis outro recebimento.

Seixas fala verdade. Por todo o lado os gaxiagenuz ou estrangeiros são recebidos como emissários da salvação que tarda, mas há-de chegar na ponta das espadas e nos tiros dos arcabuzes portugueses. Partilham com eles os melhores comeres que podem confeccionar na escassez da guerra e servem-lhos numas gamelas da feição de bandejas compridas e assentes no chão, em vez de mesas, porém essas iguarias são de estarrecer e fariam bolsar o labrego mais faminto.

Os visitantes ainda conseguem engolir uns pedaços da posta quase crua de boi ou carneiro, temperada com muita pimenta e sal, servida sobre uns pães chatos e largos, chamados apas, que fazem as vezes de pratos – e também de guardanapos, pois é a eles que os abexins limpam as mãos –, porém, o prato principal que lhes oferecem como a melhor iguaria do mundo, o chienfillá, não passa de um guisado de lixo de vaca feito de fígados e tripas mal lavadas, tudo temperado com sal, pimentos e fel. Vale-lhes, para empurrar o requintado manjar, a talla, uma cerveja de cevada e sorgo e, para lavar o mau gosto da boca, o abençoado teg, um hidromel muito saboroso, servidos ambos em cornos de boi de cinco ou seis canadas que em pouco tempo os põem a dormir como anjos.

Avistam, depois de longas e penosas jornadas, a montanha onde se refugiou a imperatriz com os filhos, as mulheres e os velhos. No sopé da serra estende-se o vasto arraial de tendas dos seus defensores, uma coorte de guerreiros abexins, além do troço dos quarenta portugueses de Henrique Barbosa que vêm recebê-los ao caminho com lágrimas de alegria e de saudade.

– Estamos aqui muito à nossa guisa, como senhores da terra – diz-lhes o feitor com voz embargada pela comoção, quando consegue falar –, porém, isso dá-nos pouca satisfação.

– .porque aqui é desterro e não a nossa pátria – conclui o que os guiara.

Fernão fica sem saber o que dizer, mordido por uma saudade igual à dos desterrados e sente-se aliviado quando Henrique Barbosa os convida para comer, depois de os aposentar na melhor tenda do arraial, por ser noite e já não poderem visitar a imperatriz.

– Os cozinheiros são abexins? – pergunta Fernão por zombaria ao feitor, que solta uma gargalhada.

– É gente da terra, mas cozinham ao nosso modo, pois já cá estamos há mais de três anos. Descansai que não vos daremos o chienfillá – e ri-se de novo quando os quatro hóspedes lançam em simultâneo um suspiro de alívio.

– Não nos importamos de tomar talla.

– E o teg até se bebe bem.

Regalam-nos com um bom assado de vaca, regado de abundante cerveja e hidromel. Entre os comensais, além dos portugueses, contam-se os três filhos de Pêro da Covilhã.

– Tal pai, tais filhos! – exclama o feitor, num rasgado elogio que os faz corar de satisfação. – São fidalgos valentes como poucos e combatem ao modo de Portugal, segundo lhes ensinou o nosso Pêro ou Cid Petrus como aqui é nomeado com reverência.

– Apesar de ter mais de setenta anos, combateu nas primeiras escaramuças com os mouros – esclarece o moço mais velho, cheio de orgulho.

– O nosso pai morreu no campo de batalha, a lutar, como era seu desejo – acrescenta o mais novo, com os olhos húmidos.

Fernão sente-se arrebatado por aquele encontro, que é mais um elo a enredá-lo na formidável teia de acontecimentos e de gentes, em que ele agora também participa, fazendo História e ligando Portugal aos quatro cantos do Mundo, deixando para o bem e para o mal a sua marca nos povos e lugares. Por sorte, o feitor é um homem loquaz e, enquanto ceiam, põe os recém-chegados a par da situação que se vive no reino da Abissínia:

– Há dez anos que este reino anda sujeito a ferro e fogo. No ano de vinte e sete, a poderosa armada do Negusa Nagast foi derrotada na batalha de ad-Dir por tropas muito inferiores em número, mas bem armadas e ainda melhor comandadas pelo maldito Granhe, que se fez imã e apelou à jihad.

– E logo no ano seguinte repetiu o feito, vencendo o Rei dos Reis numa grande batalha e ocupando cinco das principais províncias da Abássia – acrescenta Seixas que, tendo guiado os visitantes durante aqueles dias, se acha com direitos à sua instrução. – Pilhou e abrasou igrejas e mosteiros, destruiu relíquias e livros sagrados e cativou muita gente que depois converteu à Lei de Mafamede. O Preste tem vindo a perder terreno a cada assalto do Canhoto que o empurrou para as terras altas e implantou um reino muçulmano nas terras conquistadas.

Sem se melindrar com a interrupção, o feitor concorda e prossegue:

– Por isso, há dois anos, depois da destruição da riquíssima cidade de Axum, onde outrora a rainha de Sabá guardava o ouro das suas minas, o Preste enviou ao nosso bom rei D. João III e ao Papa Paulo III um pedido de socorro. O mensageiro foi o seu abuna, o bispo D. João Bermudez que, antes de ser consagrado patriarca de Alexandria, era nem mais nem menos do que mestre João, o físico português da embaixada de D. Rodrigo de Lima que por cá ficou como refém, vindo a tomar as ordens. – E conclui, encolhendo os ombros descontente: – Todavia, até hoje, não chegou qualquer resposta nem vieram tropas.

– Era então por isso que Seixas nos esperava, sem saber que vínhamos!

– Com assunto de tamanha urgência, temos sempre no porto um homem de vigia. A imperatriz vai ficar muito desiludida e angustiada por não receber carta do governador ou d’el-rei de Portugal.

Agradado da curiosidade e interesse de Fernão, quando ele lhe pede que conte com minudência o que sabe do espião de D. João II e das primeiras embaixadas entre os reinos de Portugal e da Etiópia, o feitor não se faz rogado em prolongar o serão, depois de os companheiros se retirarem a cambalear de sono e de vinho, à excepção dos três filhos de Pêro da Covilhã que não se cansam de ouvir as histórias do seu pai.

– Desde menino que tenho escutado muitos rumores sobre invejices e desavenças entre os membros das embaixadas que foram a causa de se perderem. Na casa do meu amo, o senhor D. Jorge, falava-se muito do padre Francisco Álvares que participou nas duas embaixadas e estava a escrever um livro sobre o que vira e ouvira nesta terra.

Henrique Barbosa acede de boamente ao seu pedido com tamanha viveza e minudências que Fernão não tem dificuldade em assistir com os olhos da sua imaginação, ainda mais pujante do que a do interlocutor, ao encontro entre o espião d’el-rei D. João II e o padre Álvares que viera na embaixada enviada por el-rei D. Manuel ao Preste João das Índias.

O homem é como a palma-vinho: quando jovem, doce mas sem força; na velhice, forte mas áspero

(africano)

Como Pêro da Covilhã foi ter a esta terra do Preste:

Tenho algumas vezes falado em Pêro da Covilhã português que é nesta terra e com ele alegado, e não deixarei d’alegar por ser pessoa honrada e de merecimento e crédito, e é razão que se diga como a esta terra veio ter, e dele darei conta como é razão e ele de si ma deu .

Mais me contou o princípio de sua vida. Primeiramente como era natural da vila de Covilhã nos reinos de Portugal e como foi até fora do estreito na cidade de Zeila, e daí caminhou por terra até chegar ao Preste João que é de Zeila muito perto e chegou à corte e deu suas cartas a el Rei Alexandre que então reinava, e diz que as recebeu com muito prazer e alegria dizendo que o mandaria à sua terra com muita honra. E neste tempo morreu, e reinou seu irmão Nahu, que o assi recebeu com muita graça, e pedindo licença não lha quis dar. E morreu Nahu e reinou seu filho David que hora reina, e assi quis pedir-lhe licença e não lha quis dar. Dizendo que não viera no seu tempo, e que seus antecessores lhe deram terras e senhorios que as regesse e lograsse, que a licença não lha podia dar, e assi ficou. Ele Pêro de Covilhã é homem que todas as línguas sabe que se falar podem assi de cristãos como mouros, e gentios, e que todas as cousas a que o mandaram soube, e assi delas dá conta como que as tivesse presente.