Não acharam muito que dizer um ao outro, enquanto tomavam o dejejum que a concubina lhes preparara, cheia de sorrisos cúmplices; embora trocassem algumas frases na língua chim, Fernão tinha dificuldade em entender os sons que ela pronunciava e fora com alívio que vira chegar o barco de Fukumi que vinha recolher a sobrinha.
Fernão entregara à casamenteira a carta-do-dia-seguinte que o capitão ditara ao língua e cujo teor ele desconhecia, por lhe ser indiferente, visto as cartas do jogo estarem a descoberto desde o início e ele ter aceitado jogá-lo, conhecendo de antemão o seu desfecho. O peito da nakodo erguera-se num suspiro de alívio e um ligeiro sorriso abrandara por momentos a rigidez do seu rosto.
A missiva fora decerto feita a preceito, mostrando a satisfação do nanbanjin com Wakasa, o seu desejo de casar com ela, porque nessa mesma tarde os pais da noiva convidaram-no para o tokoro-arawashi, a cerimónia em que Kiyosada e Asamia lhe ofereceram os mochi, os bolos de arroz da aprovação paterna ao casamento, aprazado para daí a três dias, data de bom augúrio do seu calendário.
Não tivera tempo para pensar na alhada em que se metera, por ter de aprender uma infinidade de coisas novas que havia mister fazer para não ofender os seus anfitriões, sobretudo o daimyō que se interessara pelo casamento e dera ao seu armeiro um precioso quimono branco para a filha usar durante a cerimónia. Também ele vestira uma espécie de manto e umas calças pretas, largas como saias, o traje dos noivos japões oferecido pelos futuros sogros.
Sente um calafrio a percorrer-lhe a espinha. Jamais poderá referir o seu casamento com uma idólatra, no livro de memórias das suas viagens que há-de escrever depois de regressar a Portugal. Se a sua união feita por um bonzo num templo gentio soar aos ouvidos do Tribunal da Santa Inquisição ficará metido numa camisa-de-onze-varas, de que terá muita dificuldade em se livrar. Fizera os três portugueses jurarem solenemente que jamais o mencionariam a alguém, assegurando-lhes que se Wakasa o seguisse como esposa, ele se encarregaria de a fazer cristã logo que chegassem a Malaca.
O matrimónio também não agradara aos monges japões, que falavam em heresia e ofensa aos bons costumes, mas o seu principal acabara por se dobrar à vontade do daimyō que apadrinhava a união. A cerimónia até fora simples e bonita, com música de flauta, tambor, sinos e bênçãos de incenso. Wakasa estava formosíssima, embora coberta de alvaiade, mal podendo mover-se no pesado quimono branco de seda ricamente bordado, parecendo-se com uma imagem da Virgem Maria no altar de uma catedral.
Da arenga do sacerdote, Fernão nada entendera, mas cumprira com os gestos que lhe tinham ensinado, trocando com a noiva, por três vezes, as taças com sake servidas pelas miko – as acólitas do monge oficiante, vestidas de branco e vermelho –, ofício que repetiram por três vezes, para mostrar a sua gratidão aos deuses, aos pais e aos parentes. Deste modo, o noivo jurara servir o sogro e a sua nova família com o seu trabalho, ou seja, ensinar-lhe o fabrico da pólvora e dos arcabuzes, para sua honra e glória.
O pior da cerimónia fora a leitura do rolo com o seishi ou juramento de fidelidade, de que ele tinha tentado transcrever os sons, tais como o tçuzzu Sōgi lhe ensinara pacientemente, para os pronunciar de forma que se entendessem, mas fora em vão que procurara decorá-lo. Saíra-lhe um arrazoado de grunhidos incompreensível, tão cómico que suscitara risos irreprimíveis a todos os assistentes, incluindo as acólitas mico, tendo o sacerdote de rosto severo autorizado a leitura do texto pelo monge Tadashi Shuza. A cerimónia terminara com a consagração de dois ramos de uma árvore sagrada e ofertas depositadas no altar dos deuses, enquanto os músicos entoavam uma canção para desejar dez mil anos de boa fortuna aos noivos.
A esposa continuava a morar na casa dos pais, onde ele a visitava ou ia passar a noite com ela, regressando sempre ao junco, um arranjo que ia ao encontro dos seus desejos, por medo de quedar de pés e mãos atados à mercê de Kiyosada.
O sogro não perdera tempo, reclamando a sua ajuda no dia seguinte ao casamento, levando-o às suas ferrarias, para lhe mostrar as cópias que fizera dos arcabuzes, atazanando-o com perguntas sobre o fabrico da pólvora e das espingardas. As cópias pareciam perfeitas, porém, ao observá-las com mais atenção, Fernão apercebeu-se de que o problema não estava no parafuso, como podia ver pelos que o armeiro fizera, mas no interior da coronha, onde era necessário fazer um furo em espiral na madeira, único modo de o atarraxar. E para isso não havia ferramentas no Japão, por ser desconhecida aquela arte.
– Como o mosquete se carrega pela boca, a coronha tem de estar apertadamente fechada – explicara-lhe Fernão, acrescentando desolado: – No junco não temos como fazer a ferramenta de que haveis mister.
Kiyosada, embora nada dissesse, parecia ter ficado muito descontente com a sua inépcia, por isso, procurara satisfazê-lo no assunto da pólvora. Juntamente com António da Mota, Zeimoto, Zhi e o bombardeiro chim do junco, lograra fazer a receita da sua composição, embora sem grande fé nos resultados, por não lhes ter sido possível testá-la.
– Aqui tendes a fórmula do my-oyaku – disse-lhe no dia em que fizera a terceira visita à esposa, rogando a Deus que permitisse a Kiyosada fabricá-la, sem fazer saltar pelos ares os paços do senhor de Tanegashima.
O sogro achava-se acompanhado por Sasakawa Koshir-o, o ecónomo do daimyō que deveria aprender a fazer o pó mágico e, se possível, melhorá-lo. Os olhos dos dois homens refulgiram à vista do papel com a receita, como se fora a fórmula mágica para a transformação dos metais em ouro.
– A mistura é composta por sete partes e meia de salitre, uma e meia de carvão e uma de enxofre. Deve ser humedecida com água e triturada num moinho, em seguida, a massa obtida tem de ser prensada, granulada e, por fim, seca.
Sem um momento a perder, os dois homens e os aprendizes lançaram-se ao trabalho. Apesar da alegria de possuir o segredo do my-oyaku, Kiyosada sentia-se muito descontente consigo próprio. O nanbanjin não lhe dera grande ajuda nas teppō, visto desconhecer por completo os segredos do seu fabrico, apenas sabia disparar com elas. Afinal, sacrificara a sua preciosa Wakasa por uma mancheia de nada, pois nem sequer estava seguro de que a fórmula do my-oyaku estivesse certa.
IX
A relva do vizinho está sempre mais verde
(japonês)
Carta do Senhor de Satsuma ao Senhor de Tanegashima:
Eu, Shimazu Tadayoshi, vos faço saber, filho meu, que me certificaram homens que vieram dessa terra que tínheis nessa vossa cidade uns três tenjikujins do cabo do mundo, gente muito apropriada aos Japões, e que vestem seda e cingem espadas, não como mercadores que fazem fazenda, senão como homens amigos de honra, e que pretendem por ela dourar seus nomes, e que de todas as cousas do mundo que lá vão por fora vos têm dado grandes informações, nas quais afirmam em sua verdade que há outra terra muito maior que esta nossa, e de gentes pretas e baças, cousas incríveis ao nosso juízo.
Pelo que vos peço muito, como a filho igual aos meus, que pelo Hizen-dono, por quem mando visitar minha filha, me queirais mandar mostrar um desses três que me lá dizem que tendes pois, como sabeis, mo está pedindo a minha prolongada doença e má disposição, cercada de dores, e de muita tristeza e de grande fastio.
Se tiverem nisto algum pejo, os segurareis na vossa e na minha verdade, que logo sem falta o tornarei a mandar em salvo, e como filho que deseja agradar a seu pai, fazei que me alegre com sua vista, e que me cumpra este desejo, e o mais que nesta deixo de vos dizer, vos dirá o Hizen-dono, pelo qual vos peço que liberalmente partais comigo de boas novas de vossa pessoa e de minha filha, pois sabeis que é ela a sobrancelha do meu olho direito, com cuja vista se alegra meu rosto.