(Peregrinação, capítulo CXXXV)
O poderoso senhor de Satsuma enviara como emissário o seu Hizen-dono ou governador de província, com uma carta para Tokitaka, juntamente com um presente de abanos e um terçado guarnecido a ouro. O daimyō, depois de ler a missiva em respeitoso silêncio, mandara preparar aposentos para agasalhar o embaixador e o seu séquito, despedindo em seguida com boas palavras os mercadores que tinham vindo do mesmo barco prestar-lhe homenagem e trazer-lhe presentes.
Quando a sala ficou despejada de visitantes, o daimyō fez sinal aos portugueses para se acercarem e ordenou ao tçuzzu que lhes trasladasse a carta, cuja substância parecia ter-lhe causado alguma contrariedade, porque ficara de semblante um tanto carregado. Tanegashima era tributária de Satsuma, a mãe e a esposa do Nautoquim pertenciam ao grande clã guerreiro Shimazu, embora de ramos de família distintos que se digladiavam pela posse das províncias de Satsuma e Ōsumi, no sul da ilha de Kyushu. A mãe era filha de Shimazu Tadaoki, chefe dos Satsuma e a mulher era filha de Shimazu Tadayoshi, chefe dos Isaku172, casado com a irmã de Tadaoki. Assim, o senhor de Tanegashima era neto de Shimazu Tadaoki que era também tio da sua mulher, não podendo por isso recusar-se a satisfazer-lhe o pedido.
– Pela grande obrigação que devo ao meu senhor Shimazu Tadayoshi – diz-lhes, quando o monge termina a leitura da carta –, estou tão desejoso de lhe fazer a vontade que dera agora grande parte da minha terra para lhe satisfazer este gosto, sabendo que ele o estimaria muito. Assi, vos rogo muito, Murashukusha e Kirishita, que um de vós vá a Satsuma, porque a Furanchisuku não o hei-de apartar de mim até que de todo me não ensine a atirar como ele.
– Beijamos as mãos de Vossa Alteza pela mercê que nos faz em se querer servir de nós – responde Cristóvão, percebendo que o moço daimyō, embora contrariado, é forçado a obedecer, por razões de vassalagem. – Ordene qual de nós quer que vá, porque esse se irá logo fazer prestes.
O Nautoquim parece aliviado, mas franze as sobrancelhas, enrugando a testa, como se deliberasse sobre uma escolha difícil, dizendo por fim:
– Vá, então, Murashukusha, que é mais alegre e menos sisudo, para desmalenconizar o enfermo. Levará uma teppō de presente ao senhor meu tio e regressará em breve para os braços da sua esposa.
– Uma teppō, Alteza? Não seria melhor guardar segredo de tão precioso objecto?
– Em tempos antigos, o príncipe de Io, embora morresse de desejo de possuir a espada de Kisatsu, não lha pediu. Todavia, Kisatsu adivinhando-lhe a vontade ofereceu-lha. Apesar de Tanegashima ser um pequeno feudo situado na última extremidade da terra, eu não sou tão mesquinho que recuse seja o que for ao senhor de Satsuma, mesmo sem ele mo solicitar.
Os portugueses admiram a generosidade do jovem daimyō ou a sua perspicácia em compreender que já não poderia guardar o segredo das armas, mesmo que quisesse, devido aos muitos rumores que se tinham espalhado pelo arquipélago desde a primeira exibição. Gracejava com os seus conselheiros, trocando ditos e galanterias, quando Hizen-dono regressa da visita à filha do senhor Tadayoshi. Tokitaka anuncia-lhe a ida do tenjikujin e faz-lhe muitas recomendações sobre a sua segurança.
Manda entregar a Fernão duzentos taéis para o caminho, que ele agradece, um pouco mais animado. Não se sente tranquilo a viajar sozinho até uma terra desconhecida, cujo povo nunca vira gente como ele, porém, a premência de Kiyosada para lhe arrancar os segredos que ele não possui ainda o assusta mais. Pede licença ao daimyō para se retirar e vai fazer-se prestes, porque o emissário pretende partir nessa mesma noite.
Neste passo da movimentada odisseia ou peregrinação de Fernão Mendes Pinto, em que o herói faz os seus preparativos para a viagem, aproveita a presente narradora o momento de pausa para, sem grande risco de lhe fazer perder o fio à meada, se justificar perante o leitor quanto à matéria deste capítulo e ao modo como lhe faz a sua narração. Quase quarenta anos depois destes sucessos, escreveu o autor, no seu livro de memórias e experiências, que viajara para o reino do Bungo, quando na verdade esteve no de Satsuma, a cujo daimyō o senhor de Tanegashima se ligava por laços familiares e políticos.
Um engano, como tantos outros achados na sua obra, que se podem atribuir não só ao lapso de tempo de mais de três décadas, decorrido sobre os acontecimentos, como pela imensidade de eventos extraordinários, lugares, visitas, recepções, acidentes e desastres vividos pelo aventureiro, que dariam para preencher sete vidas. Irá ao Bungo, mas só na sua segunda viagem ao Japão.
Com base em outros testemunhos, mormente das crónicas dos reinos visitados por Fernão Mendes Pinto, à distância de cinco séculos, esta sua narradora tem procurado corrigir algumas das discrepâncias ou lapsos; todavia, não tendo achado para esta visita nenhuma outra fonte, recorre em alguns passos da sua narrativa à própria obra do autor, não por plágio, mas para dar o seu testemunho ao leitor que não a leu. Feito o aviso, retomemos a narração já com o aventureiro a meio da sua viagem.
A navegação faz-se com ventos bonançosos, sem incidentes, além de uma paragem na angra de Yamagawa, onde permanecem dois dias de visita ao capitão da cidade, um cunhado do Hizen-dono que estava muito doente. A visita parece dar ânimo ao enfermo que melhora de saúde e os despede com um grande presente de alimentos frescos. Na manhã do terceiro dia, seguem para norte até o porto de Kagoshima, no extremo oposto da magnífica baía enquadrada pelas penínsulas de Satsuma e de Ōsumi, que Fernão considera perfeito para abrigar as grandes naus do trato portuguesas. Numa espécie de ilhéu em frente do porto ergue-se o vulcão de Sakurajima que lança nuvens de grosso fumo e cinzas, trazidas pelo vento até ao barco, enchendo o português de temor
Deixam a funce e seguem a cavalo para casa do Hizen-dono, onde chegam ao meio-dia, sendo o tenjikujin muito bem recebido pela sua mulher e filhos, quando conseguem sair do pasmo que a estranha figura lhes causa. Depois de comerem e descansarem do trabalho do caminho, o governador e os seus parentes preparam-se para a visita a Shimazu Tadayoshi, envergando vestidos de cerimónia, tendo Fernão posto as suas melhores roupas de nanbanjin, por saber que a sua vista irá despertar a curiosidade do rei173 e dos nobres da sua companhia.
O luzido cortejo segue para o palácio, com muita gente a pé, indo a cavalo os principais membros da família, com o Hizen-dono na frente levando a seu lado o tenjikujin, de cuja presença se soube na cidade, fazendo acorrer gente de todas as partes para o ver passar. No palácio são recebidos por um menino de dez anos, filho do daimyō, acompanhado por nobres com uma guarda de seis porteiros de maças. O Hizen-dono, Fernão e toda a comitiva prostram-se a seus pés.
O príncipe dá-lhes as boas-vindas, falando com um siso mais próprio de homem que de menino, apesar do espanto que lhe causa o tenjikujin; manda-os erguer e, seguido pelo seu séquito, conduz o governador e Fernão ao paço real. Nos aposentos privados, o daimyō jaz entrevado numa espécie de camilha, tendo à sua volta as filhas e a esposa principal, sentadas sobre os calcanhares no estrado segundo o seu costume. De cada lado da espaçosa câmara, alinham-se os principais parentes e ministros do reino, de pernas cruzadas sobre os tatami.
Prestam homenagem ao senhor de Satsuma que os recebe com nova cerimónia e, depois de ler a carta de Tokitaka que o governador lhe entrega, faz-lhe algumas perguntas sobre a filha, sempre de olhos postos no tenjikujin. Fernão mantém-se um pouco afastado, tendo atrás de si o tçuzzu Sōgi que o Nautoquim lhe dera em Tanegashima, um letrado muito sabedor que, em voz sussurrada, lhe faz a traslação em língua chim de tudo o que ouvem. A pedido de Tadayoshi, o Hizen-dono chama Fernão, que vem ajoelhar-se no estrado, seguido como uma sombra pelo intérprete. O governador faz a sua apresentação, transmitindo os elogios que o genro fizera ao nanbanjin, acrescentando alguns da sua lavra, pois durante a viagem ganhara-lhe amizade. O português curva o torso numa profunda cortesia, erguendo acima da cabeça a espingarda embrulhada num luxuoso pano bordado, entrega-a em seguida à rainha, dizendo em voz alta: Teppōki.