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A esposa do daimyō desembrulha a arma e mostra-a ao marido que não pode mover os braços. Exclamações de surpresa partem da assistência, à vista da arma nanban; por momentos o rosto de Tadayoshi, que se mantinha sereno e impenetrável apesar das dores, deixa transparecer o espanto, franzindo as sobrancelhas e enrugando o rosto.

– Prezaremos este presente como o maior tesouro da nossa família e Tanegashima Tokitaka tem a nossa gratidão para sempre – agradece o daimyō, saudando o enviado: – A tua chegada a esta terra, de que eu sou senhor, seja ante mim tão agradável como a chuva do Céu no meio do campo dos nossos arrozes.

A graciosa saudação, tão diferente de tudo o que Fernão ouvira, mesmo naquela nação de tanta polícia, deixou-o mudo de embaraço.

– Sinto turvação no tenjikujin – continua Tadayoshi, olhando para os senhores que estavam presentes. – Será talvez por ver tanta gente, cousa a que pode estar desacostumado, pelo que será bom deixarmos isto para outro dia, porque se fará mais à casa e não estranhará ver-se no que se agora vê. Também eu desejo muito que ele me faça prestes uma demonstração com esta teppō, estando menos assustado.

Fernão contara com a ajuda de Sōgi, durante a viagem de barco, na preparação de um discurso de agradecimento, para o que desse e viesse, pelo que pode responder ao senhor de Satsuma, sem hesitações no idioma chim, com o língua a fazer a dupla interpretação em alta voz, para que todos ouçam:

– Quanto ao que Vossa Alteza diz de me sentir turvado, vo-lo confesso, mas não por causa da muita gente de que me vejo cercado. Ao ver-me diante dos vossos pés, isso só bastava para eu ficar mudo cem mil anos, se tantos tivera de vida, porque a Vossa Alteza fez Deus em tão alto grau avantajado de todos, para que fosse senhor e os outros fossem servos. E eu, sendo formiga tão pequena em comparação com a vossa grandeza, temi que nem vós me enxergásseis, nem eu soubesse responder às vossas perguntas, tal como podeis ver por esta minha tosca e grosseira resposta.

Fernão mal pode crer no efeito que as suas palavras causam na assistência, ouvindo-os bater as palmas a modo de espanto e soltar exclamações que o intérprete lhe traslada, cúmplice:

– Vede como fala o tenjikujin!

– Não deve ser mercador, porque essa gente só trata em baixeza de comprar e vender!

– Será um bonzo pregador, na sua terra?

– Parece mais um guerreiro. ou homem criado para corsário do mar.

– Calai-vos – diz Tadayoshi, rindo –, porque quero fazer-lhe perguntas. A sua vinda apraz-me tanto, que nem sinto dores e até me apetece comer!

A consorte e as filhas, felizes de o verem assim animado, sorriem ao nanbanjin como a agradecer-lhe o milagre. O daimyō passa cerca de meia hora a fazer-lhe perguntas iguais às que Tokitaka formulara quando vira os portugueses pela primeira vez. Fernão espanta-se da ignorância que os reis, os nobres e o povo do Japão mostram sobre o mundo, como se lhes custasse a crer que pudesse haver outras nações além da sua; mesmo tendo relações com os chins, tomavam a China como mais uma ilha que poderia ser facilmente conquistada como as Ryūkyū ou Léquias. Responde-lhe, como em Tanegashima, encarecendo a grandeza do reino de Portugal ou Pu-Li-Du-Jia, como eles diziam.

Felizmente trazem-lhe de comer, interrompendo o interrogatório. O daimyō faz-lhe sinal para se acercar da camilha com o seu língua, enquanto se esforça, em vão, por engolir pequenos pedaços dos petiscos que as filhas retiram com os pauzinhos dos pratos preparados com o requinte de obras de arte e lhe levam delicadamente à boca.

– Rogo-te de que não te enfades de estares junto de mim, porque folgo de falar contigo. – Baixa a voz, a ponto de Sōgi ter de esticar o pescoço para o ouvir, e prossegue: – Pareces ser homem sabedor e experto em muitas artes. Nessa tua terra do cabo do mundo, não haverá alguma mezinha para esta enfermidade que me traz aleijado e com fastio, pois há dois meses me não apetece cousa alguma.

A proveitosa aprendizagem com o boticário da nau e com o doutor Garcia de Orta, que lhe fora tão útil no seu atribulado cativeiro na China, salvando-lhe a vida e as dos seus companheiros, permite-lhe agora reconhecer os sintomas da doença de Tadayoshi. E, como quem não se aventurou não perdeu nem ganhou, decide arriscar o prognóstico e o respectivo tratamento com o pau-da-china:

– Não sou físico, meu senhor, nem aprendi essa ciência, mas no junco em que vim da China, há um pau cuja água de cozimento cura enfermidades muito maiores que a de Vossa Alteza. Se o tomardes, tereis logo saúde, sem falta nenhuma. – Pede a Deus que lhe perdoe a jactância e o ajude com aquela cura ou ver-se-á metido em palpos de aranha. – É semelhante à raiz das canas comuns, mas vermelho por fora e esbranquiçado por dentro, com certa cor vermelha.

O daimyō folga muito de o ouvir e envia logo um mensageiro ao sobrinho, em Tanegashima, com uma carta de Fernão para Zeimoto a pedir-lhe que lhe mande sem demora uns pedaços de pau-da-china, de que há boa provisão na botica do junco, além de outras ervas necessárias para os minorativos e rectificações da cura.

Tendo referido neste mesmo capítulo a confusão que Fernão Mendes Pinto faz entre o reino de Bungo e o de Satsuma, a narradora não resiste, a propósito deste tema, a levar o seu leitor noutro salto no tempo, até um momento ainda não vivido no presente da sua personagem (porque só terá lugar durante a sua segunda viagem ao Japão, desta feita ao dito reino do Bungo), para lhe contar uma aventura fora de comum que vem a talhe de foice e decerto o divertirá, quando a ler no capítulo seguinte.

172 A esposa de Tokitaka teve duas filhas, mas deixou-o no ano de 1556 quando a concubina do marido deu à luz um filho.

173 Os portugueses davam o nome de reis aos daimyos e de reinos aos seus feudos.

X

Caia sete vezes, mas levante-se oito

(japonês)

Relação de Jorge Álvares174 ao Padre Francisco Xavier, 1546:

Esta terra do Japão treme algumas vezes. É terra de muito enxofre. Há ilhas de fogo que todo o ano deitam fumo. Algumas também fogo. Delas são povoadas, delas não. Pela maior parte todas são ilhas pequenas. É terra esta do Japão muito ventosa e cheia de tormentas. Cada lua nova e cheia há mudamento de tempo. Principalmente no mês de Setembro vem cada ano um vento tão rijo que não há cousa que o espere. Porque dá com os navios em seco três ou quatro braças pela terra dentro, e se estão em terra, às vezes os torna ao mar.

Ao tempo que donde eu estava, a trinta léguas se perderam sessenta e dous navios chins e uma nau portuguesa. Dura só vinte e quatro horas, e começa ao Sul e acaba no Noroeste, correndo por todos os rumos. É vento que é conhecido por uma chuvazinha que vem sempre diante, e com este sinal175 se asseguram os homens da terra.

Fora com um imenso alívio que Fernão se vira livre das guerras dos siames e dos bramaas, nos finais da década de quarenta, para volver a Malaca, de onde embarcara com Jorge Álvares, um capitão mercador natural de Freixo de Espada-à-Cinta, que ia de veniaga para o Japão numa nau de Simão de Melo, capitão da fortaleza.

Após vinte e seis dias de navegação com boa monção, de ventos bonanças, avistaram a ilha de Tanega ou Tanegashima. Fernão, que não queria voltar a pisar a terra do daimyō Tokitaka – por razões que serão dadas mais adiante –, invocou os seus conhecimentos das ilhas para convencer Álvares de que aquele porto não era seguro, se sobreviesse novo temporal. O capitão concordou e rumaram para o reino do Bungo, que ficava cem léguas a Norte, tendo aportado cinco dias mais tarde à cidade de Fucheu176.