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A notícia da chegada de um nanbansen, um navio dos bárbaros do Sul, como o que anos antes aferrara à insignificante Tanegashima, enchera Otomo Yoshshige de alvoroço, pela possibilidade de vir a possuir aquilo que mais desejava no mundo: uma teppō e o segredo do seu fabrico. Quando tivera conhecimento da maravilha trazida pelos nanban aos daimyō rivais, os seus espias conseguiram-lhe facilmente a fórmula do my-oyaku, o pó mágico usado na arma de fogo, mas não fora possível descobrir como eram fabricados os prodigiosos objectos. Os armeiros de Tokitaka e do seu sogro Shimazu Tadayoshi tinham feito uma boa quantidade de exemplares para usar na guerra dos seus clãs, mas as armas mostraram-se pouco eficazes por rebentarem após alguns disparos.

Soubera que, por extraordinária sorte ou pela protecção dos espíritos tutelares, um dos nanbanjins era Murashukusha, o mesmo que visitara o Nippon pela primeira vez e dera ou vendera a sua teppō ao senhor de Tanegashima. Corria pelas ilhas uma obscura história sobre o armeiro Yaita que dera a filha em casamento ao tenjikujin em troca do segredo do fabrico das teppō e do my-oyaku e que, por isso, se tinham desavindo e apartado descontentes.

Se assim fosse, Otomo esperava usar o descontentamento do estrangeiro em seu proveito, fazendo-lhe ofertas irresistíveis de tratos comerciais em troca do bendito segredo. Sem demora, enviou-lhes uma pequena embaixada de boas-vindas com presentes de refresco, para convidar Mura-shukusha, o capitão do nanbansen e os seus oficiais a visitarem-no, para falarem da venda das suas fazendas. Rogava àquele que já conhecia os usos da terra que levasse a sua teppō para uma demonstração, como fizera aos senhores de Tanegashima e Satsuma.

Segundo Fernão pôde depreender da mensagem que os enviados do daimyō trouxeram à nau, não existiam laços familiares ou de vassalagem entre o jovem Tokitaka de Tanegashima e Otomo Yoshshige, o poderoso senhor do reino do Bungo, de Higo e de Chikuzen.

– Que belo recebimento, Fernão! Ou devo dizer Murashukusha? – brincou Jorge Álvares, impressionado pela delicadeza dos enviados, com as suas cortesias e zumbaias sem fim, mas também pelo reconhecimento do companheiro e do modo como ele falara em chim com o seu língua. – Ainda bem que vieste connosco! Conhecem o teu nome, ao fim de tanto tempo e num reino onde nunca puseste os pés? Que fizeste tu aos japões, para seres tão reputado nesta terra?

– Oferecemos ao senhor de Tanixumaa um mosquete e um arcabuz, armas que eles nunca tinham visto – respondeu, tentando dominar a emoção causada por recordações que desejava esquecer e a conversa lhe trouxera à memória ainda dolorosas. – Como os seus daimyō andam sempre em guerra uns com os outros, acharam-nas umas armas magníficas e quiseram aprender a fabricá-las. O Ōtomo Yoshshige pensa o mesmo e cobiça um mosquete!

– Se com a oferta de um mosquete e de um arcabuz conseguires que este rei conceda isenção de tributos às nossa fazendas, eu próprio tos darei, dos melhores da armaria da nau, meu amigo.

– Ele vai querer que os seus armeiros aprendam a fabricá-los, podes crer! Da primeira vez não lhes pudemos ensinar porque não tínhamos ferreiro que fabricasse a peça que eles não podiam fazer por não terem utensílios apropriados, o que os deixou bastante descontentes.

– Desta vez tens o nosso ferreiro que lhes ensinará o que quiserem saber. Vou preparar o presente para o daimyō e tu vai fazer tiro ao alvo, como treino para a demonstração, pois não podes fazer má figura ou arruínas o nosso negócio. – Soltou uma gargalhada prazenteira e deixou-o, sem reparar na expressão carregada do seus rosto.

Por fim podia descansar dos trabalhos em que andava metido há mais de um mês, a fazer junto de Ōtomo Yoshshige o mesmo papel de Zeimoto em relação a Tokitaka, com a diferença de que o Senhor do Bungo era um rei muito mais poderoso, portanto, mais sujeito a sofrer conspirações e traições dos seus aliados, que rapidamente podiam passar a perigosos rivais e fazê-lo assassinar pelos seus samurais sem uma hesitação. Por isso se empenhara tanto em conseguir para o seu clã aquilo que considerava ser um segredo bem guardado dos nanbanjins – o fabrico das teppō.

Como Fernão calculara, a sua demonstração de tiro, primeiro aos komanaku, os seus cisnes de papel, em seguida às rolas, pombos e codornizes, de que a terra era bem abastada, maravilhara não só o daimyō, como toda a gente daquele reino, para quem este tiro de fogo era coisa tão nova como fora para os de Tanegashima. Os parentes e aliados de Ōtomo vieram dos seus feudos mais afastados para assistirem às demonstrações de Fernão e dos melhores atiradores da nau, não se cansando de admirarem e encarecerem as maravilhosas teppō.

A oferta das duas armas, em seu nome e no do capitão, assim como os ensinamentos do ferreiro aos seus armeiros que, em pouco tempo, levaram os habilíssimos artífices japões a fabricarem a primeira arma com a coronha perfeitamente fechada, sem risco de rebentamento, criara ao daimyō uma eterna dívida de gratidão que nada parecia capaz de saldar. Com a isenção de tributos e outros benefícios que lhes concedera nos tratos das fazendas, os portugueses tinham vendido tudo o que traziam, até à última peça, incluindo algumas de seu próprio uso, com tanto proveito que estavam todos ricos, com as bolsas recheadas de prata.

O maior admirador dos mosquetes era Hachirō-dono, o segundo filho de Ōtomo, de dezasseis anos, que não deixava Fernão sossegado com insistentes pedidos para que lhe ensinasse a disparar.

– É uma arte que leva anos a aprender, Alteza – escusava-se Fernão, temendo que, com o azar que sempre o perseguia, a arma rebentasse e matasse o rapaz ou tão-só o ferisse, acabando por metê-lo em trabalhos que lhe poderiam custar a vida.

O daimyō, que amava muito o filho, ouviu as suas queixas e intercedeu por ele junto do estrangeiro177:

– Uma alegria espanta mil preocupações, meu amigo. Ensina-o a dar um par de tiros, só para lhe satisfazer o apetite, senão não nos deixará em paz.

– Dous, quatro ou um cento! Quantos Vossa Alteza mandar! – respondera, escondendo a sua preocupação.

– Em breve Hachirō-dono irá ter contigo para a sua lição – dissera o pai.

No resto da semana não dera mais atenção ao assunto, nem o moço voltara a importuná-lo, para grande contentamento de Fernão, decidido a não fazer nada para lhes lembrar a promessa.

Num sábado, em que o português dormia a sesta deitado numa esteira, na casa perto dos paços do daimyō, onde ele lhe dera pousada para melhor o ter à sua disposição, o príncipe apareceu para a lição, com dois moços fidalgos da mesma idade. Vendo-o a dormir e a espingarda pendurada ali mesmo à mão, Hachirō-dono fez sinal aos companheiros para não despertarem o nanbanjin, mandou um deles acender o morrão sem barulho, enquanto carregava o mosquete do modo como o vira fazer mais do que uma vez.

Ao destapar o polvorinho hesitou, por não saber a quantidade exacta de pólvora que Murashukusha costumava meter na arma, porém, não podia perder a face diante dos seus companheiros e, com gestos que pretendeu seguros, encheu o cano com mais de dois palmos de my-oyaku, metendo-lhe em seguida o pelouro que tirou da pequena bolsa junto do polvorinho. Estava pronta a disparar! A admiração que leu nos rostos dos amigos e a sensação de poder que a teppō lhe transmitia inebriaram-no. Pôs a arma ao rosto, apontou para uma cerejeira do jardim, na sua frente, chegou o morrão aceso ao buraco do cano, como fazia o tenjikujin, e disparou.

O mosquete rebentou por três lados, com tamanho estrondo que quase rasgou a fusuma, o painel móvel de papel delicadamente pintado. Um dos estilhaços de madeira da coronha abriu-lhe um lanho na fronte e o gatilho cortou-lhe o dedo polegar da mão direita até ao osso. O príncipe caiu por terra desacordado, banhado em sangue, ao mesmo tempo que Fernão acordava com um berro de susto, erguendo-se de um salto e os dois moços fidalgos fugiam em corrida para o paço, a gritar a plenos pulmões: