– A teppo do nanbanjin matou Hachirō-dono!
– O pau-de-fogo do tenjikujin matou o príncipe!
Os moradores tomaram armas, em grande gritaria e acorreram ao paço, crendo que samurais de outro clã assassinavam Ōtomo e a sua família.
Fernão só se apercebeu da presença do daimyō e da rainha, quando os viu à entrada da sala, rodeados de fidalgos e damas nobres da corte. Estava fora de si, tão pálido e desatinado como os pais do ferido, que estacaram pasmados ao ver o nanbanjin, sentado no chão com os braços em volta do príncipe, cuja cabeça estava deitada no seu regaço, ambos ensopados no sangue que o português conseguira por fim suster com o lenço que lhe atara em volta da ferida da testa e o dedo que ligara com um farrapo arrancado à camisa. A rainha, com o cabelo desalinhado e o rosto coberto de lágrimas vacilou e teve de ser amparada pelas suas damas para não tombar por terra desacordada.
– O nanbanjin matou Hachirō-dono! O tenjikujin assassinou o príncipe! – o sussurro percorria a assistência, ganhava voz, prolongando-se para fora da casa já num grito de muitas gargantas dos que não viam mas adivinhavam a tragédia.
Desembainhando as espadas de fina lâmina – capazes de cortar de um só golpe um véu que esvoaça pelo ar ou separar a cabeça de um tronco, como uma corola da sua haste –, dois samurais arremeteram contra Fernão, que não se moveu, nem pestanejou, alheio a tudo o que não fosse o negrume da sua má sorte, que não lhe concedia tréguas. Estava tão cansado desta implacável perseguição que dava a morte por bem-vinda.
– Não, deixai-o viver! – bradou Ōtomo, incrédulo de que aquele homem fosse o autor de tal crime. Os samurai embainharam as espadas e ataram as mãos de Fernão, arrastando-o para longe do príncipe e lançando-o aos pés do daimyō. – Chamai aqui o seu tçuzzu, que o quero inquirir primeiro, porque suspeito que ele não estará sozinho neste feito. Pode ter recebido peitas dos parentes dos tredos que eu mandei justiçar. Que têm a dizer os companheiros do meu filho?
Temendo que lhes assacassem alguma culpa no acidente, os moços responderam às muitas perguntas sempre com a mesma frase:
– A teppo do nanbanjin matou Hachirō-dono com uns feitiços que tem dentro do cano.
– Senhor, precisas de ouvir mais? Para quê? – gritavam, indignados os cortesãos.
– Faz justiça neste tenjikujin criminoso! Dá-lhe a morte cruel que a merece.
O jurubaça tinha fugido com medo, o que parecia uma admissão de culpa aos olhos de Ōtomo que adivinhava a conspiração dos Mōri e o banho de sangue que um dia haveria de ocorrer nos seus feudos, só Murashukusha parecia não encaixar naquela intriga. O bonzo que tinha cargo da justiça dos crimes, pelo contrário, não duvidava da sua culpa e mandara já chamar dois escrivães para fazerem o assento das perguntas e respostas da sua inquirição. Trouxeram o jurubaça preso, que baqueou de joelhos a tremer diante do daimyō, mal conseguindo falar.
– Sofrerás um castigo exemplar se mentires! – ameaçava-o o bonzo de rosto severíssimo.
O língua jurava por entre lágrimas e soluços que diria com verdade tudo o que soubesse, mas nada sabia, pois não se achava presente no momento do crime; também nunca vira o tenjikujin ter encontros secretos ou às claras com outra gente fora do clã de Ōtomo Yoshiaki.
Quando tocou a vez a Fernão de ser interrogado, fizeram-no ajoelhar-se diante deles e o ministro da Justiça que arregaçou as mangas e falou sem gritar, embora com voz forte, acostumada a ser obedecida:
– Ordeno-te que nos digas em voz alta, para que todos te ouçam, por que razão quiseste matar este bom príncipe, tão moço e inocente, com as feitiçarias da tua maldita teppō?
Fernão continuava sem dar fé do que o rodeava, como ausente da alma. Mais tarde, ao contá-lo a Jorge Álvares, teria dificuldade em lembrar-se daquele julgamento em que se decidia se haveria de viver ou morrer.
– Se não responderes às minhas perguntas – insistiu o bonzo furioso com aquela atitude que tomava por contumácia –, serás condenado à morte de sangue, fogo, água e sopro de vento, para nos ares seres despedaçado como pena de ave morta que se divide em muitas partes.
Não obteve qualquer reacção do estrangeiro, cujos olhos pareciam vazios. Exasperado, o ministro deu-lhe um violento pontapé, para o despertar, bradando-lhe:
– Fala, confessa! Quem te deu peitas? Como se chamam os que te peitaram e onde vivem? Quanto te deram para matar o príncipe? E a Ōtomo Yoshshige, também intentavas matá-lo?
Fosse com a dor do coice que recebera no baixo-ventre ou a voz do bonzo a martelá-lo com perguntas, Fernão pareceu despertar e ousou responder-lhe, embora olhando para o Senhor do Bungo:
– Deus o sabe e a ele tomo por juiz da minha causa.
Contou que dormia e não vira nada do que se passara, senão quando despertara com o estrondo do arrebentamento da arma e vira o príncipe caído no chão coberto de sangue. O bonzo não pareceu satisfeito da resposta nem mostrou acreditar na sua história, ameaçando-o com medonhos castigos se não confessasse o seu crime.
– Peço-vos muito que não choreis – a voz do príncipe era fraca, mas teve a virtude de silenciar toda a gente. Olhava para os pais e, vendo marcas dos desgosto nos rostos pálidos, pareceu contrito e envergonhado. – Não deiteis a ninguém, muito menos a Murashukusha a culpa deste acidente, porque só eu sou culpado. Rogo-vos por minha vida, meu pai e senhor, que o mandeis soltar ou morrerei de remorso.
Ōtomo, com um grande sorriso de alívio, satisfez o pedido de Hachir-o-dono e mandou soltar Fernão. Chamaram duas juntas de bonzos físicas para o tratarem, mas o príncipe recusou-as, ao ouvir-lhes as arengas.
– Tirem-me esses diabos da frente – protestou agastado, impaciente com as dores dos ferimentos. – Tragam-me outros médicos que me não digam que Deus foi servido em eu estar desta maneira!
O daimyō estava desesperado e alguém alvitrou que se chamasse um velho bonzo, muito afamado, da cidade de Fucata. Com voz enfraquecida, mas num tom de grande zombaria, o príncipe respondeu-lhes:
– Belo conselho dais a meu pai, vendo-me assim tão ferido e necessitando de ser curado, para se me estancar o sangue. Quereis então que eu espere por um velho podre, que está a cento e quarenta léguas daqui, de ida e vinda, pelo que levará seguramente um mês a cá chegar?! – Ergueu a mão entrapada e voltou a cabeça com o lenço tinto de sangue para o daimyō, a fim de o comover com o seu rogo: – Meu pai, despejai esta casa e desafrontai Murashukusha, que não ganhou para o susto. Sossegai-o de que nada de mal lhe sucederá. Lembrai-vos de que ele não queria que eu mexesse nas teppō. – Soltou uma breve risada e acrescentou: – Ele me curará como souber, porque antes quero que me mate um homem que tanto tem chorado por mim, como esse coitado, do que o bonzo de Fucata de quase cem anos e sem vista nos olhos!
– Rogo-te que vejas se me podes valer neste perigo em que vejo meu filho – pediu Ōtomo a Fernão, que mal podia crer na súbita reviravolta daqueles sucessos –, porque te juro que quanto me pedires será teu, se mo deres são.
Os bonzos fizeram ouvir um coro de protestos, no entanto, o daimyō não lhes prestou atenção. E o médico, à força, fez valer a sua nova autoridade:
– Vossa Alteza deve mandar sair esta gente toda, porque fazem grande vozearia e o príncipe precisa de repouso, tal como eu necessito de silêncio para o tratar. Em um mês o farei são, se me deixarem sozinho.
Apesar da sua turvação quando vira Hachir-o-dono caído no chão a sangrar, ao ligar-lhe a cabeça com o lenço e o dedo com o trapo, apercebera-se com certo alívio de que as feridas, embora grandes, não pareciam perigosas. O polegar ficara meio pendurado, mas com uma fractura limpa, quanto à ferida da fronte, apesar de comprida, era pouco profunda, estando ambas ao alcance dos cuidados que permitiam as suas habilidades de aprendiz de barbeiro sangrador e físico.