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– Prometo que te farei muito rico se deres saúde ao meu filho.

– Vossa Alteza verá com que cuidado o farei – respondera com lágrimas nos olhos.

Levara a cura a bom termo, embora sofresse, como em Satsuma anos antes, a má vontade, perseguição e intrigas dos bonzos médicos, muito zelosos e escandalizados do favor que o daimyō conferia ao nanbanjin.

Com a liberdade de que goza qualquer contador de histórias, na manipulação do tempo na sua narração, a narradora transcreve, em benefício do seu leitor, o que Fernão contou mais tarde ao padre Francisco Xavier, na sua terceira viagem ao Japão, onde ajudou o jesuíta a construir a primeira igreja naquela terra, emprestando-lhe uma pequena fortuna em prata de que ele nunca chegou a reembolsá-lo:

– Preparei tudo o que era necessário para a cura, e comecei logo pela ferida da mão por me parecer a mais perigosa, e lhe dei nela sete pontos, mas se fora curado por mão de cirurgião quiçá que muitos menos lhe bastaram, e na ferida da testa, por ser mais pequena, lhe dei cinco somente, e lhe pus em cima estopadas de ovos, e lhas atei muito bem como algumas vezes vi fazer na Índia. Aos cinco dias lhe cortei os pontos e continuando assi com a minha cura quis Nosso Senhor que dentro em vinte dias ele foi são, sem lhe ficar mais mal que só um pequeno esquecimento no dedo polegar, pelo qual el-rei e todos os senhores dali por diante me fizeram sempre muito gasalhado e muita honra.

Retomemos agora a narrativa principal que deixámos a meio, quando Fernão se prepara para cuidar pela primeira vez da saúde de um daimyō japonês.

174 Não confundir com o navegador do mesmo nome que foi o primeiro a pisar Cantão, em 1513.

175 O centro ou olho do tufão, com rotação em espiral, desloca-se no sentido de traslação com relativa calma, mas os efeitos da baixa pressão caracterizados pela chuva abarcam centenas de quilómetros à volta.

176 Ou Fuchu, actual cidade de Oita.

177 Peregrinação, capítulos CXXXVI e CXXXVII.

XI

As dificuldades são como as montanhas:

só se aplainam quando avançamos sobre elas

(japonês)

Um sangrador de Leirea

me sangrou estoutro dia,

e vedes que me fazia:

andand’a buscar a vea,

foi-me no cu apalpar:

al fodido irá sangrar

sangrador en tal logar!

Este sangrador, amiga,

Traz ūa nova sangria,

Onde m’eu non percebia:

Filhou-me pela barriga,

Começou a sofaldrar:

al fodido irá sangrar

sangrador en tal logar!

E tal sangrador achedes,

Amiga, se vos sangrades:

Quando vos não percatades,

Se lho consentir queredes,

Querrá-vos ele provar:

al fodido irá sangrar

sangrador en tal logar!

Quem tal jogo quer jogar,

Com sa mãe vá joguetear

(João Fernández d’Ardeleiro)

A notícia de que Tadayoshi pedira ao nanbanjin para lhe tratar a doença chegou aos ouvidos dos bonzos médicos que se escandalizaram de tal modo que uma comissão encabeçada pelo seu principal pediu audiência e apresentou-lhe com veemência os seus protestos:

– É um nanbanjin, meu senhor! Um vil mercador, tão sem polícia que come com as mãos!

– Se isto se souber, Vossa Alteza será tida em muito má conta em todo o Japão.

Interrompeu-os, muito agastado, calando-os com o remoque:

– Se em dois anos as vossas mezinhas e rezas nada puderam contra o meu mal, como ousais impedir-me de procurar cura ou alívio em outras mãos e outra ciência?

Fernão foi alojado no paço, para estar mais perto do enfermo, animando-o com as suas histórias, enquanto esperavam pelo remédio, que chegou no dia seguinte. O português sabia que se não conseguisse devolver a saúde ao enfermo, os monges não hesitariam em se vingar da humilhação de terem sido preteridos em favor de um bárbaro e pediriam a sua cabeça, amotinando o povo.

– Como há muito não fazeis câmaras, Alteza, dar-vos-ei uma purga de cozimento de ameixas ou de ruibarbo, que deve surtir o efeito desejado. Senão, meu senhor, terei de vos cristelizar com um cristel de água do pau-da-china, mel rosado, óleo violado e canafístula.

Começou por combater o fastio do enfermo com uma dieta de galinha e carneiro temperados com sal, açafrão e coentro seco, cozidos ou assados segundo requeria o apetite de Tadayoshi, espevitado pela novidade dos cheiros e sabores. Depois do doente bem purgado, Fernão preparou a mezinha. Conhecia as quantidades, o tempo de cozimento, o modo de a ministrar e os seus efeitos, porque a vira fazer muitas vezes, tanto ao boticário da nau, como ao doutor Orta e ainda aos chineses nos navios em que viajara. Numa terra fria como o Japão, havia mister usar o dobro do pau que era usado na Índia, para poder produzir efeito num doente tão grave como o senhor de Satsuma, por isso cozeu, em quatro canadas de água, duas onças da raiz em vez de uma, deixando reduzir o líquido até metade.

– Além da bebida e dos suadouros, o bafo desta mezinha, quando está a cozer, é muito bom para a dor – explicava Fernão, vigiando os criados que faziam chegar o vapor às pernas e aos braços do enfermo que ele fizera transportar para uma rede suspensa, ao modo dos índios do Brasil, que os portugueses usavam para dormir quando viajavam nas naus e juncos.

Não se atrevia a sangrar o doente para libertar humores adustos e freimas salgadas, um procedimento que costumava acompanhar esta cura, por temer que lhe cortassem a cabeça, se o vissem espetar uma lanceta no braço ou na perna do senhor de Satsuma. Vinham-lhe à memória as trovas de escárnio aos sangradores que ouvira nas naus, sempre que alguém adoecia e, sorrindo contrafeito, murmurava para se animar: Quem não arrisca. não petisca! Ministrava-lhe os tratamentos com as suas próprias mãos, desveladamente, ora dando-lhe a beber a mezinha quente para o fazer suar, ora aplicando-a com panos nos membros tolhidos, distraindo o doente com as suas histórias para o fazer comer a sua dieta de frango ou carneiro.

Vivia com o credo na boca, por medo do malogro, para mais tendo-lhe dito Sōgi que os bonzos andavam a intrigar junto dos parentes e dos ministros de Tadayoshi, falando que era blasfémia, grave ofensa aos céus o curativo feito por um bárbaro sem religião. – No saber há igualeza e na ignorância contumácia, respondera-lhe com altivez, a disfarçar o temor. Como mais vale prevenir do que remediar, tratou de se mostrar pio aos olhos dos japões, passando a acompanhar os tratamentos com rezas ou ladainhas contra o quebranto e o mau olhado, como vira fazer às velhas curandeiras de Montemor-o-Velho:

Esconjuro-te, malino,

pela terra e pelos céus

e por teu malvado sino,

mau quebranto te quebrante.

Ou ainda:

Deus te fez,

Deus te criou,

Deus te desolhe

De quem mal te olhou

Se é torto ou excomungado,

Deus te desolhe do seu mau olhado.

Após a primeira semana de cuidados, era visível a melhoria do enfermo, além de outro efeito da mezinha do pau-da-china que era o forte estímulo da carne: o daimyō, sentindo alívio das dores e maior mobilidade dos membros, ansiava pelos jogos de Vénus de que há muito vivia à míngua. Assim, teve conversação com a rainha e duas consortes no mesmo dia, sofrendo uma recaída, para grande consternação de Fernão que o admoestou respeitosamente, alertando-o contra os perigos do coito durante o tratamento:

– A virtude imaginativa ajuda muito à deleitação carnal, Alteza, rogo-vos que eviteis a presença de mulheres até ao fim do tratamento, para não cairdes de novo em tentação e danardes a cura.

– Muitos são os prazeres dos sentidos, mas o mais difícil de resistir é a ilusão do amor – notou o paciente, rindo. – Diz-se que com um cordão feito de cabelo de mulher entrançado até um poderoso elefante pode ser preso facilmente e que os veados no Outono nunca deixam de aparecer ao chamamento de um apito feito de um tamanco que foi calçado por uma rapariga!

Tadayoshi, como tinha ainda bem fresca a lembrança dos sofrimentos passados e depositava toda a sua confiança na sabedoria do nanbanjin, obedeceu-lhe e proibiu a entrada de mulheres nos seus aposentos, incluindo a rainha.