Quando terminava os tratamentos e o real enfermo o dispensava, Fernão desenfadava-se a percorrer a cidade ou a visitar o Hizen-dono e outros grandes senhores do reino que o convidavam, acolhendo-o com muitas honras e ricos presentes. No entanto, um estranho desassossego ia-lhe minando a alma, não o deixando ser contente. Surpreendia-se com o desconcerto dos seus sentimentos, causados pela imagem de Huyen (ou seria Wakasa?) que voltava a persegui-lo como uma assombração e ele sentia-lhe o peso sobre o peito, os lábios rosados que se fechavam sob os seus como um botão de rosa vermelho.
As recomendações feitas ao doente sobre os desejos da carne serviam também ao médico porque, segundo os tratados de medicina do Ocidente, como laboriosamente descrevera a Tadayoshi com a ajuda do tçuzzu, a imaginativa virtude mandava à expulsiva, que deitasse nos companhões178 a semente genital e, quanto mais se imaginava nisso, tanto vinha mais asinha ao membro a semente, de tal modo que o corpo parecia querer explodir. Bem prega frei Tomás. murmurou desalentado; tendo proibido ao doente os jogos de amor, fora incapaz de recusar os serviços da cortesã que ele pusera ao seu serviço.
Para se distrair e ao daimyō dos apetites da carne cada dia mais acesos e das imaginações que esses desejos provocavam em ambos, embora por razões distintas, Fernão preparou demonstrações de tiro da teppō e, apesar de não ser exímio a disparar como Zeimoto, também não deixou os seus créditos por mãos alheias, provocando à gente de Satsuma e aos seus senhores o mesmo espanto que causara aos de Tanegashima. Era para Tanegashima que ele desejava voltar, mais ansioso de se reunir a Wakasa do que alguma vez poderia imaginar.
Passados vinte dias de tratamentos, com grande regozijo da corte, Shimazu Tadayoshi ficou curado. Para mostrar o seu reconhecimento ao tenjikujin, deu-lhe seiscentos taéis de prata, cumulando-o de honrarias. A rainha e as suas filhas presentearam-no com muitas peças de seda, os senhores principais ofereceram-lhe terçados e abanos, de modo que a cura lhe remontou a mais de mil e quinhentos cruzados.
A carta de Zeimoto e Cristóvão não podia ter chegado em momento mais propício. Os amigos instavam-no a regressar quanto antes a Tanegashima, porque o junco já estava reparado, Wang Zhi queria partir para a China e não iria esperar muitos dias por ele. O daimyō autorizou o seu regresso, dando-lhe uma funce de remos, com vinte criados e um homem nobre por seu capitão para o levar a Tanegashima.
Enquanto via Kagoshima a desaparecer no horizonte, o aventureiro imaginava o seu encontro com Wakasa e sorria com ternura. Contudo, a experiência já devia ter ensinado a Fernão Mendes Pinto que os Fados não lhe permitiam ser feliz por muito tempo.
178 Testículos.
XII
Se quiseres conhecer um cavalo, monta-o; se quiseres conhecer uma pessoa, convive com ela
(japonês)
Se vejo a ponte
lançada por voos de pegas
sobre o arco do céu
tornada alva por espessa geada
então a noite está quase no fim
(De Ōtomo no Yakamochi, membro dos Trinta e Seis Imortais da Poesia)
Olho lá ao longe,
Além de todas as flores de cerejeira
E áceres escarlates,
Para aquelas cabanas no porto
Desvanecendo-se no crepúsculo outonal
(Fujiwara Teika)
Poderei viver até
Suspirar por este tempo
Em que sou tão infeliz
E recordá-lo com ternura.
(Fujiwara no kiyosuke)
O ensinamento das Três Obediências a que se devem sujeitar as mulheres, tolhendo-lhes a liberdade de disporem da sua própria vida, martela-lhe os ouvidos e enche-a de revolta: em solteira, deve obediência ao pai ou ao irmão, em casada, ao marido e na velhice ao filho.
Quem lhe dera poder fugir e esconder-se, como as heroínas dos seus amados monogatari, mas não tem meio de escapar, nem lugar para onde ir. Tudo, mesmo a morte, seria preferível a viver na casa flutuante dos nanbanjins, como as concubinas dos corsários wokou. O navio de Murashukusha, o seu marido tenjikujin, não tardará a desenrolar as velas e a partir para o alto mar, em direcção às ilhas distantes e ela terá de o acompanhar, para viverem juntos, apesar de continuarem a ser estranhos.
Breve, fugidio é o seu mundo, onde pisa um caminho sombrio que leva à escuridão; falta-lhe todavia a força de voar, de morrer pelo seppuku, para não ter de cumprir os votos que fizera ao nanbanjin. Pior do que o ódio ou a miséria seria a perda da sua honra, do seu bom nome.
Quando no seu corpo de menina despontaram os primeiros anseios de mulher, muitas noites fechara os olhos para sonhar o amor, criando com os seus dedos inexperientes as carícias de um amante desconhecido, que a deixavam dorida de paixão. A ponte suspensa dos sonhos desfizera-se e a realidade brutal viera tomar posse deles, quando o pai a entregara ao nanbanjin e este lhe rasgara o véu da virgindade, fazendo dela uma mulher.
A concubina Oe, a quem fora igualmente proibido sonhar, compreendera o seu medo e ajudara-a a passar a provação que, afinal, não fora tão penosa quanto temera. Murashukusha, apesar da embriaguez, mostrara-se surpreendentemente delicado e terno, as suas mãos fortes tinham-lhe acariciado os seios como se os beijassem. Ela sentira os mamilos endurecerem como espinhos, um arrepio de prazer a percorrer-lhe o corpo, ateando-lhe um fogo nas veias como jamais havia experimentado nos seus sonhos. Nem sequer nos banhos públicos quando o corpo nu da sua amiga mais amada se colava ao seu com languidez, os seus lábios, doces como pétalas húmidas de orvalho, a beijavam às escondidas por entre nuvens de vapor.
Sentira-lhe o afago dos dedos e da língua na pele, a descobri-la demoradamente, como se a saboreasse em cada curva, a cada reentrância, atardando-se nas axilas de fina seda, descendo ao ventre liso, brincando com o botão do umbigo num fremir de cócegas, abrindo a recatada dobra das virilhas, para chegar ao fruto apetecido, a ameixa rubra a amadurecer em macio ninho de penugem negra.
A surpresa do prazer que marulhava nas suas veias como uma corrente quente, pondo-lhe o corpo em brasa, fora mais forte do que o medo ou o asco, e ela entregara-se não ao nanbanjin mas ao amante tantas vezes sonhado, abrindo-se como a flor da ameixoeira ao primeiro raio de sol que a beija. Sofrera em êxtase o gume e a ferida, cauterizada pelo suave corrimento de sangue e húmus.
Do seu jardim, que o Outono pintou já em cores de fogo, avista a baía, o porto e a praia com as cabanas dos pescadores, desvanecendo-se no crepúsculo que se anuncia. O vento sopra mais forte e a chuva deixou um brilho de luar nos ramos inclinados dos áceres. Com a manga do quimono limpa as gotas das lágrimas que não cessam de correr, na dor antecipada da partida.
Não tardará a sentir a falta do sol e da lua de Tanegashima, a sua terra natal, definhará de saudade da casa dos seus pais, vendo passar os dias, os meses e os anos longe de tudo o que sempre amou.
O seu corpo será levado para longe, mas o seu coração não se sujeitará à triste sorte do cativo, esteja onde estiver, voará em direcção ao sol nascente, para casa, como os pássaros que vê chegar para se recolherem nos ramos da árvore ancestral. Na praia a espuma flutua sobre as ondas, como o desespero na sua alma, sem esperança.
Depois do casamento, o marido visitara-a três vezes e ela despertara nos braços de Murashukusha, com os sentimentos tão emaranhados como os seus longos cabelos. Ele falava-lhe com ternura de amante, dando-lhe por vezes o nome de Huyen, murmurando palavras em língua do Grande Ming que ela nem sempre entendia. Não sabe ler-lhe o coração, vê-o como se o não visse e nada lhe diz com palavras, embora a sua alma seja o leito de um rio por onde correm sensações inconfessáveis.
Um bando de gansos ruidosos voa em direcção ao lago. Segundo diz a concubina Oe, os sentimentos nos corações dos homens são como as folhas das árvores que se espalham com o vento ou como as flores no Outono, cujas cores esmorecem facilmente. Que sucederá a Wakasa, longe da família, num mundo hostil, quando o nanbanjin se cansar dela?