Chegam ao templo de Jionji com os últimos fulgores do crepúsculo, momento de melancolia que alumia e destrói, propício ao recolhimento, ao carpir silencioso de amores mortos e desamores. Zeimoto pede ao porteiro para chamar Wang Zhi com o seu intérprete.
– Não esperávamos por vossa mercê tão cedo – diz o capitão corsário, depois de ter expressado a Fernão o seu pesar pela morte funesta da esposa. – Assim poderemos partir logo que as últimas mercadorias sejam embarcadas, dentro de dois ou três dias.
Conhecendo bem os hábitos, maneiras e ganância dos monges japões de tirarem dinheiro às gentes, a pretexto de servirem de intermediários entre este mundo e o Além, Fernão entrega-lhe uma bolsa de taéis de prata.
– Dai-a aos bonzos, para que orem pela minha mulher. Dizei-lhes que quero vê-la, para me despedir dela.
– Não está ninguém da família a velá-la. Acautelai-vos, dizem que morreu de mal pestífero.
Como previra, os monges arrecadam o dinheiro e não põem impedimentos ao seu pedido, conduzindo-o a uma espécie de capela com um altar, onde ardem lamparinas e paus de incenso. O bonzo acende um archote e retira-se, deixando-o só diante do caixão pousado sobre um estrado baixo. Fernão roga ao Deus dos cristãos pela salvação da sua alma, deixando correr as lágrimas sem vergonha nem alívio.
São sempre os mais fracos ou inocentes, sobretudo mulheres, a sofrerem neste mundo os desígnios insondáveis de Deus que ele não pode entender e lhe parecem injustos. As mulheres que haviam dado cor e alento à sua vida tinham morrido de morte violenta, por quererem escapar a um destino tirânico que as subjugava, privando-as da liberdade e do amor. Ele fora, de certo modo, o instrumento da sua perdição, soltando a fúria dos elementos sobre as suas cabeças. D. Joana da Silva, o amor da sua mocidade, morrera pelo ferro que a degolara no seu jardim de delícias, Huyen fora engolida pelas águas no naufrágio, Meng desvanecera-se sem deixar rasto, como fumo espalhado pelo vento e Wakasa não tardaria a ser consumida pelas chamas do fogo purificador.
Recorda-as por entre lágrimas, os rostos confundindo-se, quase esfumados uns, outros vívidos e nítidos como pinturas, mescladas expressões de dor, raiva e desprezo, com vislumbres de ternura esperançosa, de quase-amor, numa amálgama dolorida impossível de destrinçar.
Precisa de ver Wakasa pela última vez, porque ela é o repositório, o espelho de todas as outras. Mete o punhal pela ranhura da tampa do caixão, soltando-a aos poucos dos encaixes, sem achar grande resistência. Teriam preparado a morta como para uma festa, segundo o seu uso, vestindo-lhe um belo quimono, pintando-lhe cuidadosamente o rosto até parecer viva e fresca como uma noiva. A saudade é a companheira dos que não têm companhia e ele quer gravar a imagem pura da donzela para sempre na sua memória, guardá-la no seu coração como um tesouro, para o consolar na adversidade. A tampa salta, Fernão levanta-a, pousando-a delicadamente no solo e, fazendo apelo a toda a sua coragem, olha para dentro do caixão.
Sente o chão fugir-lhe debaixo dos pés e, por momentos, é incapaz de se mover, paralisado de horror. O caixão tem pedras em vez do corpo de Wakasa! A encenação da morte e do enterro não passavam de um embuste de Kiyosada para ludibriar o nanbanjin, seu genro. Cego de raiva, soltando maldições e impropérios, Fernão lança com todas as suas forças o caixão contra a parede. O fragor do rebentamento das madeiras e das pedras faz acorrer em sobressalto os amigos com o corsário.
– Malditos sejam! – grita-lhes Fernão, espumando como um possesso. – Danados sejam todos os Yaita por sete gerações! Quero partir quanto antes desta terra de traidores. Levai-me daqui.
Já por mais de uma vez a narradora alertou o seu leitor para as incongruências, contradições e aparentes erros da história de Fernão Mendes Pinto, não só cometidas pelo próprio, mas por outros que, no decurso dos séculos, meteram nela a sua colherada e contaram o conto aumentando seu ponto. Vem isto a propósito da falsa morte de Wakasa, omitida quer por Fernão no seu livro (talvez por despeito e vergonha de ter sido tão afrontosamente burlado), quer pelos cronistas de Tanegashima que, quiçá para salvarem a face de Kiyosada e da família Yaita, deram a seguinte versão dos ditos sucessos:
Wakasa partira com o capitão para a sua terra, porém, sentindo-se saudosa da pátria, escreveu um poema em língua japoa:
Dias e meses
me acompanham saudades
de Yamato,
lembrando-me sempre
que aí moram meus pais.
Mostrou o poema ao marido que sentiu dó dela. Voltou o capitão no ano seguinte, o décimo terceiro ou ano do dragão (mil quinhentos e quarenta e quatro). O nanbansen ancorou ao largo de Kumano junto de Sakaimura. A bordo vinha Wakasa e pai e filha reuniram-se de novo. Por felicidade, vinha no navio um ferreiro e com ele por professor Kiyosada logrou aprender a técnica do fechamento do cabo da coronha.
Veja, pois, caro leitor, com quantas verdades se faz a História.
XIV
Se é para buscar abrigo, que seja sob uma árvore grande
(japonês)
Carta das mulheres léquias à mãe d’el-rei de das ilhas Ryūkyū:
Pérola santa congelada na ostra maior do mais fundo das águas, estrela esmaltada de raios de fogo, nós, as somenos formigas da tua despensa, aposentadas no esquecido das suas migalhas, filhas e parentas da mulher do Broquem, com todas as mais tuas cativas aqui assinadas te fazemos, senhora, queixume do que os nossos olhos hoje nos mostraram, que foi uma pobre mulher estrangeira, sem semelhança de carne no rosto, alagada toda num charco de sangue, com seus peitos feridos com tão admirável crueza que aos brutos do mato fazia espanto e a toda a gente temor medonho, gritando em vozes tão altas que te afirmamos todas em lei de verdade que se Deus lhe inclina as orelhas por ela ser pobre e desprezada do mundo, [tememos] que grande castigo de fogo e de fome venha sobre nós, pelo que receosas [te rogamos, por respeito à alma del Rei teu marido, que peças] com eficácia grande a el Rei teu filho que se mova por Deus e por ti e por nossos gritos e lágrimas a haver piedade destes estrangeiros e perdoar-lhes toda a culpa que tiver deles, pois, como sabes, [foram acusados] por homens torpes e de mau viver, a que não é lícito inclinarem-se as orelhas.
(Peregrinação, capítulo CXLI)
Pêro de Faria olha-o como se ele fosse uma assombração vinda do outro mundo.
– Julguei-te morto, alma de Deus! Até mandei rezar missa pela tua alma! Que te aconteceu, homem?
Fernão Mendes Pinto não consegue suster as lágrimas quando o capitão de Malaca, seu patrono e benfeitor, o abraça com sincera amizade.
– Inda me custa a crer que estou vivo – responde-lhe, quando consegue falar. – Mas perdi tudo, outra vez. É o meu fadário!
– Vives e isso é que conta! Voltarás a fazer fortuna e talvez não tenhas de esperar muito para começar – anima-o o capitão, com um sorriso. – Senta-te aí a comer e conta-me tudo dessa tua viagem, que logo falaremos de negócios. Naufragaste nas ilhas dos Léquios?
Após sucessivos golpes de sorte, mudados em outros tantos reveses de fortuna, Fernão já não estranha que os Fados ou a Divina Providência o persigam com os seus castigos. Se perdera toda a riqueza que trouxera do Japão (e, por pouco, também a vida), desta vez a culpa fora exclusivamente sua e da sua falta de prudência.
– Na volta da nossa viagem ao Japão, quando o corsário Wang Zhi me desembarcou em Liampó, juntamente com Francisco Diogo Zeimoto e Cristóvão Borralho, caímos na asneira de contar aos moradores portugueses a nossa descoberta das ilhas onde nascia o sol, como eram ricas em prata para tratos com altíssimos lucros.
– O que fostes fazer! – ri-se o capitão. – Nunca vos disseram que o segredo é a alma do negócio?
– Aprendemo-lo à nossa custa! A ganância ensandeceu os moradores, dando causa a uma corrida desenfreada aos barcos e às mercadorias da China, cada um tentando aprestar-se o mais depressa possível, para ser o primeiro a fazer a viagem. Apenas em quinze dias aprestaram-se nove juncos, todos tão mal negociados e apercebidos, que alguns deles nem levavam piloto, só iam os donos que nada sabiam da arte de marear.