(Verdadeira Informação das Terras do Preste João das Índias,
escrita pelo P.e Francisco Álvares)
Pêro da Covilhã cala-se, fatigado ou perdido nas recordações que desfiava há várias horas, sem que o padre Francisco Álvares, sentado na sua frente, ousasse interrompê-lo para não quebrar a magia. Deixava-o boquiaberto aquela confissão, a primeira que o espião de D. João II fazia a um sacerdote em trinta e três anos de Etiópia, porque, como os padres abexins não guardavam o segredo do confessionário, só na igreja e no íntimo do seu coração se confessara a Deus.
Ao entrar na sua tenda, ia preparado para ouvir uma extensa enumeração de pecados e predisposto a dar-lhe a absolvição, por muito condenáveis que fossem os vícios do beirão; considerava penitência bastante as três décadas que o escudeiro fora forçado a viver, primeiro entre infiéis e depois com os negros, embora cristãos, dos confins de África. O que acabava de escutar não era um rol de delitos, mas o relato minucioso de uma prodigiosa viagem apenas comparável à do veneziano Marco Polo. E o seu protagonista surgia-lhe como a encarnação de um verdadeiro milagre, considerando que, em Portugal, há muito o haviam dado por morto.
O antigo escudeiro do Príncipe Perfeito parece despertar de um sonho e olha-o, como se subitamente se tivesse apercebido da sua presença:
– Nos primeiros anos deste meu desterro, perdida toda a esperança de sair daqui, sentia-me ainda mais descorçoado por não ter novas do reino. Um dia, porém, ouvi uns mercadores mouros falarem de grandes navios de franges6, que andavam às presas no estreito do mar Roxo, tendo atacado Mombaça e Quíloa, tomado Çacotorá e incendiado Zeila. Rejubilei. Era a confirmação de que Bartolomeu Dias havia descoberto a passagem para o Índico e que os portugueses navegavam já pela costa oriental de África e pelo mar Roxo a dar santiago nos mouros.
O padre Francisco sorri, sem sair do pasmo que lhe causa a formidável memória daquele homem de cerca de setenta anos de idade, robusto e vigilante. Um varão da fibra de Bartolomeu Dias, Duarte Pacheco Pereira ou Afonso de Albuquerque, a estirpe de heróis que faziam do pequeno reino de Portugal uma nação maior.
– Embora el-rei D. João II tivesse começado a preparar a armada, foi D. Manuel quem enviou Vasco da Gama a descobrir a Índia, no ano de noventa e sete, a que se seguiu, três anos mais tarde, Pedr’Álvares Cabral, já com uma grande armada para impor respeito ao Samorim7 de Calecut.
– Nós só tivemos rascunho desses sucessos no ano de mil quinhentos e oito, quando aqui chegaram João Gomes e o P.e João Sanches, enviados pelo capitão-mor Tristão da Cunha, disfarçados de mercadores e guiados por um mouro. Nesse ano morrera o Preste Naód e a Itegê Eleni e o Abuna Marcos, que têm os grandes senhores na mão e muita influência na terra, fizeram levantar ao trono o seu filho mais novo, em detrimento do irmão Anqo Israel, que continuava vivo e de boa saúde em Amba Geshen, a fortaleza onde viviam encerrados com as suas famílias todos os parentes dos sucessivos Prestes que pudessem ter direito ao trono. Lebna Dengel ou Incenso da Virgem, que vós conheceis por David, era menor e, embora a rainha viúva Na’od Mogassa fosse a regente, era Eleni quem governava. E eu assegurei à Itegê e ao Abuna que os portugueses eram um povo poderoso, valente e grande defensor da fé cristã, que lhes conviria muito ter por aliados e amigos, contra o rei de Adel e outros vizinhos mouros. Como aqui, na Abássia, andam muito devagar, só quatro anos mais tarde e, a meu pedido, é que ela enviou o mercador Mateus como seu emissário a Portugal.
– Foi então obra de Eleni, a rainha velha! Por isso o Preste disse ao nosso embaixador que não mandara qualquer emissário a Portugal.
– O Preste era então uma criança e estava doente, mas a Itegê via como o império estava a ser acossado de todos os lados pelos mouros e necessitava de aliados cristãos. Eleni enviou Mateus à Índia, para que Afonso de Albuquerque tratasse da sua viagem a Portugal. Eu ajudei a escrever as cartas para o governador e para el-rei.
– Mesmo as partes em que o Preste oferece a el-rei D. Manuel as princesas negras, com seus ricos dotes, para casarem com o príncipe herdeiro e os infantes portugueses? – O padre ri-se, secundado pelo escudeiro. – Afonso de Albuquerque recebeu-o com todas as honras, mas na viagem para Portugal, no ano de catorze, o embaixador foi mui maltratado pelos inimigos do governador, os capitães Bernardim Freire e Francisco Pereira. Deram-lhe pouco de comer, esbofetearam-no, depenaram-lhe as barbas e até o puseram a ferros, desacatando-lhe as duas mulheres que levava. Enfim, um inferno! Os capitães diziam que Mateus era um espião mouro, traidor e mentiroso, não um embaixador do Preste como afirmava Afonso de Albuquerque, o qual apenas se queria mostrar grandioso para que el-rei o fizesse conde. Com isto queriam desacreditar o governador que favorecera o emissário.
– E el-rei creu neles?
– Não. D. Manuel fê-los prender, mal desembarcaram em Lisboa. E recebeu Mateus com todas as honras, pondo-se de joelhos para beijar a cruz do Santo Lenho que lhe mandava o Preste. El-rei estava mui ufano daquela embaixada e enviou notícia dela sem demora ao Papa, ao doge de Veneza e a muitos outros reis e príncipes, mantendo o embaixador na corte, durante um ano, às suas custas, com todo o fausto.
– Se Mateus lá chegou no ano de catorze e el-rei o tomou por verdadeiro emissário do Negusa Nagast, porque tardou Sua Alteza seis anos a enviar uma embaixada em resposta?
– El-rei despachou Mateus logo no ano seguinte à sua chegada, junto com o embaixador Duarte Galvão que levava um riquíssimo presente para o Preste. Eu acompanhei-os. Partimos na armada para a Índia com o governador Lopo Soares de Albergaria que ia substituir Afonso de Albuquerque, não por merecimento mas por influência de validos, Deus me perdoe se não é verdade o que digo! Durante a viagem, sobretudo em Cananor, semeou-se grande zizânia entre os embaixadores que viajaram juntos, porque Mateus era muito assomado e acusou Duarte Galvão de ter deixado morrer por falta de cuidados um nobre abexim da sua companhia. O nosso embaixador, quezilento e escorropião8 da muita idade e da viagem, acusou-o de ser mouro e falso enviado do Preste. Mateus insultou-o em aravia de tal modo que o língua se escusou a fazer a traslação porque as cousas que ele dizia não eram para se dizer e depois podiam dizer que não disseram tal.
É a vez de Pêro pasmar com os sucessos que desconhecia:
– E o governador não soube pôr fim à querela?
– Pelo contrário, ainda lançou mais achas na fogueira. Já na fortaleza de Cananor, em Outubro, mandou lavrar um auto, dando azo à má-língua dos argolões9, sobretudo do escrivão Vilalobos que era velhaco e inzoneirão. Estas traquinadas e inteligências estenderam-se por todo o ano que passámos na Índia, sem que Lopo Soares enviasse a embaixada ao Preste.
– Que coisa era, o presente? O Negusa Nagast crê que era outro e não o que lhe destes, pois este é mui pobre.
– E tem razão, o Preste! O outro era um tesouro sem preço e todo se perdeu! Sua Alteza queria mostrar-lhe que também o reino de Portugal era rico e poderoso – disse, com um misto de mágoa e orgulho. – Trazíamos armaduras, armas, arreios e selas de veludo. Havia uma cama completa, guarda-portas, mesas, cadeiras de estado, muitos panos de armar, bordados com histórias da Virgem e fábulas antigas, paramentos, baixelas de prata para as igrejas e muitos arcazes com obras de devoção. Da rainha D. Maria vinha para a esposa do Preste um riquíssimo livro de horas e para a rainha Helena uma meada de aljôfar com uma cruz de rubis.