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– Isso já não é temeridade, é sandice!

– Partiram todos juntos, num domingo de manhã, contra vento, contra monção, contra maré e contra razão, porque de tão contumazes não atendiam a nenhum aviso dos perigos em que se metiam.

– Tamanha sede de lucro pode cegar.

– E eu, que tinha obrigação de ter mais siso, também me deixei ir na onda. Velejámos às cegas durante esse dia e à noite sobreveio-nos uma grande cerração seguida de tempestade em que se afundaram sete juncos com seiscentas pessoas, das quais cento e quarenta eram portugueses honrados e ricos.

As duas embarcações restantes não tardaram a seguir-lhes a sorte, rebentadas contra as restingas das Léquias, com tal violência, que apenas vinte e quatro homens e uma mulher lograram chegar à praia com vida. Neste arquipélago de Ryūkyū repetira-se, quase ponto por ponto, o calvário da China. Os sobreviventes, nus e famintos, foram tomados pela população da comarca de Sipautor, um grande lugar de mais de quinhentos vizinhos, levados presos de três em três para um templo cercado de altas paredes e vigiados por muitos guardas.

Embora ninguém os maltratasse e todos usassem para com eles de muita piedade – assegurando-lhes de que el-rei Sh-o Sei era de natural generoso, muito inclinado aos pobres, pelo que não tinham nada a temer naquela terra –, o facto de estarem presos e a semelhança com o funesto naufrágio que sofrera na China, deixavam Fernão mais desconfiado do que qualquer um dos seus companheiros, sabendo como os gentios podiam ser cruéis e tiranos para com os estrangeiros que lhes vinham dar à costa. A reputação de que gozavam os portugueses naqueles mares não era de molde a tranquilizá-lo, se por desgraça os naturais descobrissem a sua origem.

Não tardaram a ser levados para a cidade de Pongor, a mando do broquem ou governador do reino, tendo os náufragos pernoitado pelo caminho numa prisão-cisterna da vila de Gundexilau, onde estiveram toda a noite metidos num charco, a servirem de pasto a centenas de sanguessugas que os sugaram quase até à última gota de sangue.

Quatro dias depois de ali terem chegado, o broquem convocou-os para uma audiência. Levaram-nos atados de três em três, pelas quatro principais ruas da cidade e Fernão sentira o coração apertar-se com um mau presságio. O governador recebera-os na sala de audiências, sentado numa tribuna, ornada de panos de seda, com dossel de brocado, rodeado por seis porteiros de maças, ajoelhados. Um corpo de alabardeiros, com as alabardas embutidas a ouro, dispostas ao longo das paredes de toda a sala, onde já se achava uma infinidade de gente de várias nações. Prostraram-se a seus pés, com as mãos erguidas ao céu, pedindo misericórdia e ajuda para volverem a Malaca; o broquem ouvira-lhes as queixas e respondera-lhes num tom de comiseração que lhes parecera sincero:

– Tenho tamanha piedade da vossa miséria e dor da vossa pobreza, que vos certifico em boa verdade, e assim ela me valha diante d’el-rei Sh-o Sei, que mais quisera agora ser cada um de vós outros, do que ter este cargo, porque temo muito escandalizar-vos, o que por nenhum caso queria fazer. Porém vos rogo, como a amigos, que vos não espanteis de vos eu fazer algumas perguntas necessárias ao bem da justiça e quanto ao mais que competir a vossa soltura, vós a tereis. Podeis descansar nesta minha promessa!

Recebera os agradecimentos dos prisioneiros, dados não em palavras mas em abundantes lágrimas de gratidão (e também de espanto pela sua bondade), esperando pacientemente até os ver mais sossegados para mandar chamar os escrivães, os dois peretandas ou corregedores da corte e os dez ministros da justiça a fim de lhes fazer a devassa. Vendo o seu tribunal bem ordenado, pusera-se de pé com um terçado nu na mão e como por artes mágicas transformara-se de generoso governante em implacável juiz. Com expressão colérica e voz severíssima, sujeitara-os a uma cerrada inquirição, trasladada no mesmo tom pelo seu jurubaça, para apurar quem eram, de onde vinham, como se chamava a sua nação, qual a razão da sua vinda ao arquipélago de Ryūkyū, quem os trouxera e para onde iam quando se perderam.

– Somos mercadores portugueses, naturais de Malaca – respondera Fernão que os companheiros tinham escolhido para porta-voz, preferindo arriscar parte da verdade, por saber como os léquios temiam os corsários chins e wokou. – Fazemos tratos com a China, por isso embarcámos em Liampó para Tanixumaa, onde já fomos de outras vezes. Perto da ilha do Fogo fomos destroçados por uma terrível tormenta que nos fez varar o junco na restinga da vossa montanha de Taidacão, onde se afogaram sessenta e oito dos nossos companheiros. Aos vinte e quatro que aqui vedes salvou Deus, lançando-nos miraculosamente na vossa praia, tão nus e ensanguentados como as nossas mães nos botaram no mundo. Valeu-nos a caridade, a piedade das donas e donzelas desta vossa terra, que fizeram um peditório pelas ruas de Sipautur para nos vestirem e alimentarem com as suas esmolas.

– A que título possuíeis, no vosso junco, tamanha riqueza em peças de seda quantas o mar deu às gentes que as recolheram na praia e me dizem ser no valor de mais de cem mil taéis de prata?

A voz e o semblante do broquem endureceram, ao acrescentar, alteando a voz para ser ouvido por toda a assistência:

– Não me parece possível que tais riquezas possam ser adquiridas por homens, honestamente, sem roubos e burlas.

A desconfiança do governador devia-se decerto a mexericos dos chins mercadores que via na assistência e Fernão, apercebendo-se do perigo que corriam, apressara-se a refutar a acusação:

– Juro-vos, meu senhor, que não somos ladrões e sim mercadores honestos. O Deus em que cremos não nos permite furtar e matar.

– Como justificas, então, que as vossas gentes, no tempo passado quando tomaram Malaca, por cobiça dos seus tesouros, tenham matado sem piedade muitos dos nossos, de que ainda agora há nesta terra algumas viúvas?

– A causa dessas mortes foi a guerra, meu senhor, não a cobiça de os roubar, porque o não costumamos fazer em parte nenhuma.

– Achais, então, que é falso o que dizem de vós? Negareis que quem conquista não rouba? Quem força não mata? Quem senhoreia não escandaliza? Quem cobiça não furta? Quem oprime não tiraniza? Por todas estas coisas que de vós se afirmam como verdade, parece que Deus, ao largar-vos assim da sua mão, dando licença às ondas do mar que vos afogassem, mostrou bem a inteireza da sua justiça.

Sentira a justeza daquelas recriminações, conhecendo por experiência os métodos empregados pelos portugueses para enriquecer na Índia, sendo raros os que passavam pelo comércio pacífico e honesto com os nativos. Hesitara, sem saber o que dizer, mas o broquem também não lhe dera ocasião a isso, ordenando aos seus peretandas que os levassem de novo à prisão.

– .Onde ficaríamos a aguardar a decisão d’el-rei Sho Sei de nos absolver ou condenar à morte por ladrões.

– Como ousou esse bárbaro gentio dar lições de probidade e honradez aos portugueses? – brada Pêro de Faria, furioso, interrompendo-lhe o relato. – Talvez seja de recomendar ao capitão-mor da nossa armada que lhe dê uma lição, pondo em prática aquilo que ele diz que nós fazemos na Índia.

– Asseguro-vos que tomar a Léquia grande é empresa fácil, bastando para isso dous mil homens, pois a sua gente não é guerreira, nem tem armas. Eu posso fazer-vos o debuxo dela e dar-vos toda a informação necessária sobre os lugares por onde se deve acometer para a conquistar, o que seria cousa de grande proveito para el-rei de Portugal e para os portugueses que labutam na Índia, porque só em tratos as suas três alfândegas rendem conto e meio d’ouro, afora o muito arroz e trigo que cultivam ou as suas riquíssimas minas de prata e cobre.

– Se assim é, podeis crer que o recomendarei ao governador – promete o capitão. – Mas, volvendo à tua história, porque mudou de aviso o broquem, sendo primeiro tão inclinado à piedade para logo vos acusar de ladrões?