Выбрать главу

– Ele não nos condenou logo e até intercedeu por nós nas cartas que escreveu a el-rei, o qual, para se certificar de que lhe faláramos verdade, mandou ir secretamente à prisão um dos seus espias disfarçado de mercador estrangeiro que, a pretexto de nos socorrer, trataria de averiguar miudamente as razões da nossa ida às suas ilhas.

– Fostes desmascarados!

– Não, porque o segredo foi mal guardado. Uma alma caridosa avisou-nos da sua vinda, de modo que, na sua presença, fingimos ser as mais miseráveis e infelizes criaturas que jamais pisaram a terra. Este fingimento, que já nos tinha valido a piedade do capitão, dos cavaleiros que nos prenderam, dos moradores dos lugares por onde passáramos e das damas honradas de Pongor que nos tinham provido do bom e do melhor, acabou também por convencer o espia da nossa inocência, o qual prometeu interceder por nós junto d’el-rei para que nos libertasse e enviasse a Liampó ou Malaca. Mas de novo o azar nos bateu à porta.

O azar chegara ao porto na figura de um corsário chim que tinha tratos com Sh-o Sei, a quem pagava um tributo de metade das presas tomadas na China, em troca de abrigo e da real protecção.

– O perro odiava os portugueses, porque num recontro com Lançarote Pereira, no porto de Lamau179, lhe haviam queimado três juncos e matado duzentos homens! Quando soube que os presos estrangeiros pertenciam à raça dos seus inimigos e iam ser libertados, tratou de embrulhar o caso com muitas falsidades e aleivosias a nosso respeito. Logrou convencer Sh-o Sei de que perderia muito em breve o reino, porque era nosso costume espiarmos uma terra a pretexto de negócio para depois a tomarmos como ladrões, destruindo toda a coisa que nela achávamos. El-rei creu nele e assinou a sentença de morte, ordenando que nos fizessem em quartos.

– Víbora peçonhenta! Como foi que vos livrastes da morte?

– Escapámos graças a uma petição que fizeram as léquias, mas tudo começou com a mulher do piloto que se salvou do naufrágio.

A portuguesa sobrevivente fora separada do marido e dos filhos e recolhida por piedade em casa da filha do broquem, onde vivia com o maior conforto. Quando, por indiscrição do mensageiro, a notícia da condenação chegou aos ouvidos da dona da casa, Conchanilau, cheia de pena pela sua protegida, contou-lhe o que soubera, a fim de a preparar para a perda do marido e dos filhos.

Ao ouvir a terrível nova, a mulher ficara sem fala e caíra desacordada no chão, como morta, para grande aflição da filha do broquem e da sua tia que viera contar-lhe o segredo. Os seus cuidados trouxeram a infeliz à vida, contudo temeram vê-la expirar de paixão, com o pranto que fazia em altos gritos, surda às palavras de consolo que lhe davam. Pasmadas, sem saberem o que fazer, viram-na rasgar o rosto com as unhas com tal crueza que o sangue lhe corria em fios pelas faces desfeitas e pescoço, alastrando pela cabaia como um lenço escarlate.

Nunca se vira em Ryūkyū uma manifestação de dor como a da portuguesa e a novidade da mutilação correu célere pela cidade, comovendo todas as mulheres, novas e velhas, solteiras, casadas ou viúvas, que acorreram qual tumultuosa onda a casa de Conchanilau, para conhecerem a heroína estrangeira. Vendo o seu lastimoso estado, logo ali decidiram escrever uma carta à rainha-mãe, rogando-lhe pela alma do seu esposo que intercedesse, junto d’el-rei seu filho, a favor dos estrangeiros, dando-lhe conta da injustiça daquela condenação, que levara a mulher portuguesa a derramar o sangue do seu rosto com o desgosto da morte anunciada do marido e dos filhos.

Escrita pela filha do broquem e assinada por cem mulheres das mais honradas da ilha, nessa mesma noite a carta foi levada, pela filha de um poderoso mandarim, a Bintor onde pousava el-rei, entregue por sua própria mão à sua tia Nhay Meicamur, camareira-mor e valida da rainha-mãe, para que a fizesse chegar sem demora a Sua Alteza.

– Perderei a minha honra e crédito ante aquelas que me escolheram, senhora minha tia – suplicou a donzela de joelhos com rosto molhado de lágrimas –, se não lhes levar o perdão d’el-rei para os condenados, até daqui a dois dias.

– Estando em jogo a honra, tua e de nossa família – replicou a tia –, para mais sendo a causa tão justa como dizes e confirmam todas as senhoras principais que assinam a carta, farei tudo para que tornes a Pongor com boas novas. Como o tempo escasseia e os verdugos estão com pressa, quando esta manhã a rainha despertar, eu estarei a seus pés para lhe entregar a vossa petição. Vem comigo.

Muito em segredo, a dama, abriu a porta de um passadiço secreto que só ela conhecia e comunicava com os paços, justo ao lado dos aposentos da rainha. Deixou a sobrinha na antecâmara e foi deitar-se aos pés do leito da sua senhora, embora não tão silenciosamente como era seu costume.

– Que se passa, Nhay Meicamur? – perguntou a rainha, acordando estremunhada. – Deixastes-vos cá esquecer esta noite ou temos novidade?

A camareira pediu-lhe humildemente perdão por a ter despertado e contou-lhe a visita da sobrinha com a petição das damas de Pongor.

– Ela que venha ler-me a carta – ordenou a rainha.

A donzela entrou e lançou-se a seus pés, beijando-lhos com muita gratidão. Obedecendo ao seu pedido, leu a missiva da filha do broquem, com tão grande sentimento que a Sua Alteza, com os olhos cheios de lágrimas, lhe disse:

– Não mais! Pára! Não mais! Não é justo que esses infelizes percam a vida, porque bem basta por castigo a execução que o mar neles fez. Ide ora repousar um pouco e logo que seja manhã, ireis comigo ler esta carta a meu filho.

– Tão bem trabalharam a rainha, a tia e a sobrinha, que a carta foi lida a el-rei Sh-o Sei – conclui Fernão. – No entanto, Sua Alteza recusou-se a receber-nos, dizendo que, por ter o ofício de rei, não lhe era dado ver gente que, conhecendo muito de Deus, usava pouco da sua lei, tendo por costume tomar o alheio. As generosas léquias, pelo contrário, agasalharam-nos em suas casas e proveram-nos de todo o necessário até à nossa partida para Liampó, de onde pude embarcar para Malaca e vir dar-vos conta destas minhas desaventuras.

– Não há dúvida que tens boa lábia para embaixador, para mais, falas bem as línguas destas terras – exclamou Pêro de Faria maravilhado com a sua história. – Servirás o meu propósito melhor do que todos os que por cá andam agora.

O capitão passou o serão a pô-lo ao corrente dos últimos sucessos dos portugueses na Índia, de que andava há muito arredado, por terras do Cataio e do Cipango. A que mais paixão lhe causou foi o martírio de D. Cristóvão da Gama às mãos do rei de Zeila, Ahmed al-Ghazi, o Granhe ou Canhoto.

– Quando soube que a armada dos portugueses estava às portas do mar Roxo, no ano de quarenta e um, a rainha Sabla Vangél mandou o Barnagais ao governador D. Estêvão da Gama, com um urgente pedido de socorro.

– Ela já tinha enviado um dos seus bispos comigo – apressou-se a dizer Fernão – com o mesmo pedido, mas, como ficámos cativos dos mouros e o abexim morreu, perdeu-se o recado e a ajuda. D. Estêvão mandou lá o irmão mais novo?

– D. Cristóvão ofereceu-se e não descansou enquanto não conseguiu o comando da expedição de quatrocentos portugueses, tudo gente honrada e experimentada na guerra, mais duzentos abexins para os assistirem.

– Só quatrocentos? Para combater um exército bem disciplinado de mouros e turcos sob o comando do Canhoto numa jihad contra os cristãos? Espanta-me que não tenham morrido todos no primeiro encontro.

Apesar dos entraves, tinham alcançado espantosas vitórias, segundo contara Miguel Castanhoso, um dos sobreviventes da campanha, primeiro sozinhos, porque os abexins tinham desertado o seu rei aos milhares, fugindo para as montanhas ou passando-se para o lado do invasor, a fim de salvarem a vida e os seus bens.