Com a entrada do ano de quarenta e dois, depois da tomada de uma serra fortemente defendida pelos mouros, as vitórias portuguesas sucederam-se e os abexins começaram a recobrar ânimo, muitos vindo a incorporar-se no pequeno exército de Anaf Sagad, engrossando-o.
Apesar da superioridade numérica, da experiência e qualidades de comandante de Ahmed al-Ghazi, o ardor e valentia de D. Cristóvão (que bastas vezes raiavam a temeridade), conseguiram vencer os batalhões mouros em dois combates, fazendo grande mortandade nos seus homens.
Na terceira batalha, a sorte mudou, porque o rei de Zeila veio sobre eles com todo o seu exército, não lhes dando tempo de se reunirem às forças do Preste que vinham ao seu encontro. Os portugueses foram desbaratados, ficando pelo campo muita gente morta e ferida, tendo o próprio D. Cristóvão levado duas arcabuzadas numa perna e no braço direito, quebrando-lho por cima do cotovelo. Por fim, os turcos invadiram-lhes o arraial e os portugueses sobreviventes foram forçados a fugir para uma serra defendida por gente fiel ao Preste.
Na precipitação da fuga, Miguel Castanhoso, que tinha a seu cargo a protecção de Sabla Vangél, apesar de muito ferido, conseguiu pô-la a bom recado, mas, D. Cristóvão com os catorze fidalgos seus companheiros constantes, perderam-se com a escuridão da noite e tomaram outro caminho.
No seu rasto foram doze turcos de pé e vinte de cavalo, desejosos de o alcançarem, dando com ele num bosque, junto do ribeiro onde se acoutara e os companheiros lhe cuidavam da perna e do braço. Tomaram-nos de surpresa, prenderam-nos com grandes gritos de prazer, levando-os com muito escárnio e pancadas para o arraial de Ahmed al-Ghazi.
Diante da tenda do rei estavam espetadas cento e sessenta cabeças de portugueses, porque o Granhe pagava por cada uma que os seus homens cortassem. Quando D. Cristóvão entrou na tenda, o mouro mandou que lhe trouxessem as dos catorze companheiros e, para mais o magoar, bradava-lhe com grande gáudio dos seus homens:
– Que gente é esta? É com esta ralé que querias tomar a minha terra? Vês agora a tua doudice? Por tão grande atrevimento desejo fazer-te grande honra.
Despiram-no, ataram-lhe as mãos atrás das costas, açoitaram-no cruelmente e com os sapatos dos seus negros deram-lhe bofetadas no rosto. Segundo contou Miguel de Castanhoso:
– E das suas barbas lhe fizeram fazer candeias de cera, e fez-lhe pôr fogo nelas. E com tenazes lhe fez arrancar as pestanas e sobrancelhas. E, depois disto, lhe fez que visitasse todas as tendas dos seus capitães, para seu refrigério. Foram-lhe feitas muitas injúrias, as quais ele sofria com muita paciência, dando muitas graças a Deus por o trazer a tal estado depois de haver conquistado cem léguas de terra para os cristãos, tirando-as aos mouros que lhas tinham tomadas.
– Ahmed al-Ghazi cortou-lhe a cabeça com a sua própria mão – conclui Pêro de Faria, com tristeza, vendo que Fernão tem os olhos marejados de lágrimas. – Dizem que no lugar onde o seu sangue correu, nasceu uma fonte de água cristalina que cura muitas doenças. E esse não foi o único milagre, porque os abexins sentiram tanto o martírio que ele sofreu por sua causa que vieram de todas as partes da Abássia para se juntarem ao exército do Preste e servirem com os cento e vinte portugueses que tinham escapado à chacina. Lançaram-se então sobre os turcos e mouros com ímpeto indomável, desbaratando-os, com a morte do Granhe, e expulsando-os das suas terras ao fim de dez anos de domínio.
– Não morreu em vão o filho do descobridor da Índia, Deus o tenha em sua glória.
179 Ilha de Nan’ao, ao largo de Guangdong (China), um dos lugares de contrabando e tratos entre os portugueses e os piratas (wokou).
LIVRO VI
MAR DE JAVA
JAVA
Em frente da ponta extrema da ilha de Samatra, para sul-sueste, do lado sul da linha equinocial, fica a ilha chamada Java Maior ou Grande Java. Aqui encontra-se um estreito entre Samatra e Java, chamado Estreito de Sunda. Esta ilha começa em sete graus da banda do sul, estendendo-se na direcção leste quarta a sueste, numa extensão de cento e cinquenta léguas. Qual a sua largura ainda não se sabe, pois ainda não foi descoberta, nem os seus habitantes a conhecem. Alguns supõem que é terra firme do país chamado Terra Incógnita, que se estenderia desde as proximidades do Cabo da Boa Esperança até aqui, mas disso até agora não se tem a certeza, pelo que é considerada uma ilha. Continuando pela mesma região e costa, a 25 léguas de Java Maior começa a ilha de Java Menor, ou Pequena Java, e um pouco mais adiante a ilha chamada Timor (onde a madeira de sândalo cresce em grande quantidade), e mil outras ilhas na sua proximidade, sobre as quais ainda nada se sabe em pormenor, embora sejam todas habitadas e férteis em gente e mercadorias, tal como as Javas.
(Itinerário, Viagem ou Navegação de Jan Huygen van Linschoten para as Índias Orientais ou Portuguesas – século XVI)
I
Quem come pimenta fica com a boca a arder
(malaio)
Minha mãe, seja então adeus.
Pela derradeira vez face a face,
tu, mãe, e eu.
Apenas este dia, hoje,
me verás face a face.
Não mais nos falaremos,
a não ser em nossos sonhos,
veremos o rosto um do outro na lua,
sentiremos o corpo um do outro no vento.
(Bujangga Manik)
Perdeu-se para sempre,
ninguém o poderá resgatar,
tão incerto é o paradeiro.
Menos que semente de mostarda
fugidio qual rasto de besouro,
transparente no ar,
como o trilho deslizante da garça.
(Sri Ajnyana)180
Fernão Mendes Pinto navegara de Goa a Java, com um junco de Pêro de Faria, para carregar pimenta, que de seguida levaria para vender na China, contudo, a colheita fora tão escassa nesse ano na ilha e tivera tanta procura, que já não havia que chegasse sequer para carregar um batel. Os portugueses decidiram então ficar em Banten durante o Inverno, a vender as suas fazendas em paz e sossego, até à monção do ano seguinte, que os levaria à China.
Este forçado descanso contrariava os seus sonhos de fortuna, sendo no entanto uma verdadeira bênção depois das agruras sofridas no ano anterior, durante o cativeiro no Martavão e em Pegu ou na viagem ao reino de Calaminham181 com outros sete portugueses, como ele escravos do embaixador do rei de Bramaa. Tabinshwethi queria fazer tratos de paz e aliança com aquele poderoso rei e enviara-lhe uma embaixada com um magnífico presente para que, no ano seguinte, ele fizesse guerra ao Sião, seu vizinho e inimigo. Assim, o tirano ficaria livre para empreender a conquista de Avaa e assenhorear-se de toda a Birmânia.
A viagem fora longa e difícil, embora enriquecedora, tanto para a sua experiência do mundo como para o conhecimento de si mesmo. Calaminham era um reino muito mais poderoso e rico do que os de Pegu, Bramaa, Tanguu, Arracão, com o seu senhorio dividido em quatrocentas partes, cujos símbolos eram elefantes que davam o nome à principal cidade de cada região, da qual dependiam catorze vilas.
Durante os cerca de oito meses daquela verdadeira peregrinação, em que havia pouco para fazer, gastara o tempo em ver, ouvir e perguntar sobre os usos, as leis, os pagodes e sacrifícios que via com grande temor ou espanto, como a celebração do dia dos mortos pelos bhikkhu ou bicos, os monges adoradores de Buda, no templo de Tinagoogoo. A procissão a que assistira fora a maior manifestação de fé, mas também a mais sangrenta, com maior número de sacrifícios de sangue e morte que vira em toda a sua vida, por serem às centenas, senão aos milhares, os fiéis que se flagelavam, cortavam pedaços de carne do próprio corpo e se lançavam debaixo das rodas dos carros que transportavam os seus ídolos para serem esmagados ou cortados ao meio.
As covas de Pak U – aonde acompanhara o embaixador no cumprimento duma promessa pela cura da grave maleita que o acometera – eram outro prodigioso lugar de culto, com vários milhares de estátuas de Buda, de desvairados tamanhos e materiais, fruto da devoção e piedade dos gentios, cuja fé lhe parecera mais firme e sincera que a de muitos cristãos.