Em Timplão182, a capital de Calaminham, o embaixador fora recebido pelo imperador com todas as honras, partilhadas pela sua comitiva de cativos portugueses, que ele estimava acima dos bramaas, provendo-os de bons trajos e de tudo o que necessitavam para a sua escolta, como se fossem homens livres e seus oficiais.
Cumprida a missão, empreenderam a penosa viagem de regresso, tendo sido acometidos, já em terras de Pegu, por um bando de salteadores que lhes roubou o riquíssimo presente enviado pelo imperador a Tabinshwethi, matando-lhes cento e oitenta homens, entre os quais dois dos portugueses, deixando os restantes muito malferidos e o embaixador às portas da morte. O roubo, mais do que a morte dos soldados, causara uma fúria cega ao tirano bramaa, que fizera perseguir o bando de ladrões até os apanhar a todos, recuperando o presente e punindo-os com mortes atrozes, para servirem de exemplo dissuasor.
Apesar de o embaixador os tratar com muita cortesia e generosidade, os seis cativos portugueses aproveitaram-se da guerra que grassava novamente na região para se lançarem numa fuga desesperada através de terras hostis até à costa de Pegu, onde embarcaram para Bengala e depois Goa, graças à generosidade dos capitães portugueses que lhes deram passagem nos seus barcos, salvando-lhes a vida.
Em Goa, achou Pêro de Faria que, tendo terminado o seu segundo mandato como capitão de Malaca viera instalar-se na capital do Estado da Índia com uma grossa fortuna acumulada na sua longa estadia no Oriente, onde se dedicava inteiramente aos tratos das especiarias, com os seus filhos e uma verdadeira rede de parentes e amigos portugueses, gentios ou mouros, visto os negócios e o dinheiro não terem religião. Fernão sempre lhe fora grato, reconhecendo que não poderia ter achado melhor patrono na Índia do que este veterano de mil campanhas. A confirmá-lo, foi recebido por Faria de braços abertos e de novo socorrido na sua indigência, com uma viagem ao reino de Sunda, na ilha de Java, a carregar pimenta para ir vender na China, cujo parte no lucro o haveria de compensar de todas as misérias sofridas.
Ao entrar no mar de Java, a narradora confessa ao seu leitor que foi forçada a glosar, em parte, alguns capítulos da Peregrinação183, por não haver outras fontes sobre estes acontecimentos vividos por Fernão Mendes Pinto. Mas, seria imperdoável não lhe apresentar os episódios que eruditos estudiosos da sua obra reconhecem como verídicos e têm o mérito de completar as crónicas javanesas escritas posteriormente por autores muçulmanos que tendem a deixar no esquecimento as suas violentas jihad de conquista dos reinos e povos gentios.
Por outro lado, os sucessos aqui narrados ocorreram por volta de mil quinhentos e quarenta e seis, entre as duas viagens feitas pelo nosso andarilho à Birmânia e ao Sião, as quais serão relatadas no sétimo e último mar, o de Andaman.
Atendendo a que os acontecimentos de Pegu e Sião, apesar de separados no tempo, perfazem uma unidade coerente, a sua narradora escolheu apresentar-lhe primeiro o mar de Java, por permitir uma melhor compreensão da história, tanto mais que, se até este ponto do romance o seu leitor não o abandonou, foi porque aceitou fazer a viagem que ela lhe propôs, de navegar por entre os escolhos até chegar a bom porto. Advertido o leitor, retomemos a história e vejamos o que fez o nosso aventureiro em Java.
No paseban, a grande praça diante dos paços reais, a arena é uma larga cercadura de altos troncos de bambu, enterrados no solo. Os mercadores portugueses tinham sido convidados a assistir à luta e Fernão acha-se confortavelmente instalado no espaço reservado à gente de qualidade, logo abaixo dos nobres jaus. Quando o búfalo é introduzido na jaula, o povo que se apinha no recinto rompe em gritos e aplausos. Corpulento, com a enorme cabeça provida de cornos longos e curvos como sabres de corsário, o touro escava o solo com as patas e solta um mugido ameaçador, arrancando novas aclamações da multidão que tem no búfalo o símbolo da sua própria força e bravura. Pela abertura oposta entra o tigre, saudado com uma violenta surriada, por encarnar o inimigo, o adversário de Sunda, dentro de Java ou estrangeiro. É um belo animal, de pêlo dourado e focinho estriado de branco e preto, que estaca, travando o ímpeto inicial da sua corrida, hesitante ou assustado pelo som das vaias, os beiços arreganhados a mostrar duas fiadas de dentes acerados. Ao vê-lo, o búfalo escava o solo com mais força e baixa a cabeça, como a preparar a investida, mas não ataca.
Do alto da jaula lançam-lhe borrifos de água a ferver e o animal acusa a dor com um ronco furioso. É o sinal para o salto do tigre, a mostrar como a menor corpulência é compensada pela agilidade do seu corpo e velocidade de ataque. Parece voar e vai encaixar-se entre o cornos do búfalo, o corpo arqueado, com as garras das patas dianteiras a rasgar-lhe dez longas estrias sangrentas no lombo e as traseiras cravadas na barriga. Momentaneamente cego pelo corpo do adversário e desorientado pelos gritos da assistência, o touro recua contra as canas de bambu da cerca e sacode a cabeça para se libertar. Da assistência, os que estão mais próximos incitam-no, chegando-lhe ao corpo molhos de urtigas, por entre as barras de madeira.
O búfalo espinoteia desesperado e, com uma violenta sacudidela da cabeça, lança o tigre contra o solo, espezinhando-o; indiferente aos dentes e garras que lhe esfacelam o focinho, esventra-o com duas cornadas, recebendo uma estrondosa ovação da multidão delirante.
Fernão regressa à sua pousada, maravilhado pela luta a que assistira pela primeira vez. Os combates de animais eram os desenfadamentos mais apreciados pelos jaus e este fora mais impressionante do que os dos galos, os de dois búfalos ou mesmo entre um homem e um búfalo.
Está há quase dois meses em Sunda, uma espécie de ilha de trezentas léguas em redor, separada da grande Java pelo rio Chemano ou Chi Manuk e de Samatra, a Ocidente, por um largo boqueirão a que dá o nome. Ao longo das suas costas, incontáveis ilhas formam um estreito, no qual se acha o porto de Banten Girang, numa enseada de três léguas de largo, onde desagua um rio que divide a cidade ao meio e pode ser navegado por juncos e galés.
Não tivera tempo para estudar a terra nem os povos de Java, como gostava de fazer antes de uma primeira visita a qualquer reino ou lugar e estava um pouco apreensivo, embora saiba que, por mais que se procure conhecer os usos de uma nação, sempre se está sujeito a sofrer surpresas, por vezes abomináveis, como lhe sucedera no reino dos Batas, em Samatra, uns anos antes. Nos curtos períodos que passara em Malaca, onde vivia uma multidão de jaus, ouvira falar da ilha, das suas gentes aguerridas e traiçoeiras, colhendo também durante a viagem algumas informações dos seus companheiros que já tinham tido tratos nestes reinos.
Pêro de Faria, como sempre, conhecia muitas histórias, parecendo não haver empresa ou missão de perigo naqueles mares, no início das conquistas dos portugueses, em que ele não tivesse participado. Contou-lhe que no ano de mil quinhentos e treze, depois da tomada de Malaca por Afonso de Albuquerque, Páte Unuz, governador de Japara, na costa norte de Java, concertara em segredo uma poderosa armada, com dois mil guerreiros jaus e forte artilharia, para expulsar os portugueses da península malaia.
Por sorte, achava-se no porto de Malaca prestes a partir para Goa, o capitão-mor do mar Fernão Peres de Andrada. Um nome que Pinto ouvira nomear por mais de uma vez com grande admiração durante as suas atribuladas deambulações, depois de o ter conhecido em circunstâncias muito pouco honrosas, na sua juventude, como encobridor de adultérios. Ao ver o mar coalhado de velas, o capitão percebera que se tratava do ataque de Páte Unuz, anunciado havia algum tempo pelos seus espias. O jau navegava com muita dissimulação por entre as ilhas do lado de Samatra, para os portugueses pensarem que se tratava de uma frota vinda de Portugal.
Andrada fizera aparelhar sem demora uma armada de dezassete velas e saiu ao seu encontro. O capitão Pêro de Faria adiantara-se logo com a sua galé a remos, correndo quase a par da caravela muito veleira de Jorge Botelho e, em chegando ambos à distância de tiro do grande junco do Unuz, construído como uma fortaleza, bombardearam-no sem cessar, causando-lhe grandes danos e retendo-o até à chegada da frota portuguesa, que acometeu a inimiga com toda a sua artilharia, abalroando-lhe os seus navios e matando-lhe muita gente.