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O confronto só cessou com a chegada da noite, quando ambas as armadas foram forçadas a lançar ferro perto de terra. Na manhã seguinte, Páte Unuz, ao ver-se abandonado pelo seu aliado mais forte, batera em retirada, mas Peres de Andrada perseguira-o e desbaratara-o, obrigando-o a fugir para Java. O feito dos portugueses foi tão notável que assombrou e atemorizou aquelas partes do Oriente, pondo fim à guerra com os jaus.

O que trouxera de momento algum alívio a Malaca, permitindo-lhe ocupar-se das outras duas frentes de batalha – os constantes ataques do deposto rei Mahamed, refugiado na ilha de Bintão, e os assaltos aos navios portugueses e à fortaleza pela armada do rei de Achem. Fora também o tempo em que se fizeram as viagens de descobrir às ilhas das especiarias, em particular, à Ilha do Ouro, uma busca que se transformara numa espécie de demanda do graal, intentada e continuada por muitos aventureiros dispostos a arriscarem a vida, em que Fernão ainda pudera participar.

No ano de vinte e um, dera-se uma espécie de milagre, contara-lhe ainda Pêro de Faria, quando o rei de Sunda enviara o príncipe Ratu Samiam, seu filho e herdeiro, por embaixador a Jorge de Albuquerque, então capitão de Malaca – a quem conhecera na primeira visita dos portugueses a Java, no tempo de Afonso de Albuquerque –, com um pedido para que fosse construir uma fortaleza no seu reino, a fim de se poder defender dos constantes ataques da frota do rei muçulmano de Demaa.

Isto interessava particularmente a D. Manuel, que estava em ânsias com a notícia da chegada de Fernão de Magalhães às Molucas e queria impedir a navegação dos castelhanos naqueles mares. El-rei deu ordens a Malaca para que se fizesse sem demora a fortaleza em Sunda. Jorge de Albuquerque, que reconhecia quão importante era ter um posto de vigia e de defesa naquela ilha contra os navios dos achens, enviara Henrique de Leme, com ricos presentes, para fazer um tratado de aliança e ali construir o forte.

O príncipe Samiam, que por morte de seu pai subira ao trono com o título de Prabu Surawisesa, recebera calorosamente o embaixador e o tratado de Sunda Kalapa fora assinado no dia vinte e um de Agosto de mil quinhentos e vinte e dois. El-rei concedia aos portugueses o direito de carregarem toda a pimenta que desejassem, comprometendo-se ainda, em sinal de amizade, a pagar mil sacos da preciosa especiaria em cada ano, a partir do início da construção da fortaleza, em troca de ajuda militar contra o inimigo comum.

Acompanhado pelos seus oficiais de Xabandar e a gente principal do reino, Henrique de Leme escolhera o lugar onde se iria construir a fortaleza. Para celebrar o tratado com grande festa, tanto dos portugueses como dos jaus, assentara um padrão184 de pedra, com as armas e a Esfera d’el-rei de Portugal, na praia que passou a ser denominada nas cartas de marear por Aguada do Padrão, uma formosa terra de coqueiros na boca do rio, em Calapa185. Contudo, estes auspiciosos começos de aliança e amizade foram interrompidos ou adiados por três anos, com a morte do governador, devido aos conflitos e zangas entre os fidalgos portugueses que sempre acontecem a cada mudança de poder na Índia.

Em Java também ocorreram profundas mudanças nesses três anos, com as rebeliões e lutas pela sucessão ao trono, seguida pela violenta tomada de poder dos reis muçulmanos de Demaa, de consequências dramáticas para os portugueses, sobretudo no tempo do ulema a quem chamavam santo, o imã Sunan Gunung Jati, pai do presente rei Hasanudin que recebia agora os cristãos portugueses com maior benevolência, desde que servissem os seus interesses.

Fernão esquecera muitos pormenores e até os nomes de alguns dos intervenientes nessas histórias antigas, de pouco préstimo para os seus negócios do momento, sem suspeitar de que muito em breve voltaria a ouvir falar delas, em circunstâncias tão estranhas como difíceis de crer, por serem quase da esfera dos milagres.

180 Bujangga Manik – poema sundanês do séc. XV-XVI (literatura do período clássico anterior ao islamismo. Sri Ajnyana – poema alegórico sundanês clássico.

181 Calaminhão, presumivelmente Lan Sang, o reino do Lao (Peregrinação, capítulos CXLIV a CLXXI).

182 Talvez Luang Prabang, a capital do reino do Lao, Siang Dong ou Siang Thong.

183 Peregrinação, capítulos CLXXII a CLXXVIII.

184 Este padrão encontra-se no Museu Nacional da Indonésia, em Jacarta.

185 Ou Kalapa, actual Jacarta.

II

Honra e proveito não cabem em saco estreito

(português)

Em Penaruqua, cidade de Java, estava uma irmã del-rei, casada com um seu capitão-geral de muita idade; ele falecido, a mulher ficou moça formosa. Vendo-se sem marido, quis cumprir o costume antigo, que é as fidalgas queimarem-se.

O povo, nobres e irmão quiseram ir-lhe à mão, e porque estava em Balambuam, mandou o príncipe e um infante com os principais do lugar. Nada puderam aproveitar nisto; chegou o rei a lhe rogar com muita eficácia, dizendo que o marido passado era mais emprestado que dotado, pela desconformidade da idade, que lhe daria outro em fidalguia, nobreza, valia, qual ela quisesse e lhe pertencia e outras cousas, não sem lágrimas dele e companhia.

Respondeu que como queria que ela começasse erro que para outras, de menos estado, seria mui vituperado, que nunca Deus quisesse que ela fizesse cousa que, sendo seu irmão de tão alta geração, ficasse infamação.

Visto, el-rei, sua determinação, se tornou a Balambuam; ela e criadas, ataviadas, com tangeres, cantares, festas e prazeres, com as vidas acabaram suas jornadas: não havia oito dias que isto passara à nossa chegada.

Reinos há cá, cidades, vilas que, como se vêem vencidos, matam-se velhos, mulheres e meninas para não serem cativos, forçadas, corrompidas, maltratadas dos inimigos.

(Tratado das Ilhas Molucas, de António Galvão, século XVI)

– Têm tamanha cagança – avisara-o o capitão – que cuidam estar acima de qualquer outro povo. Se por acaso estiveres sentado sobre um poial ou de pé em lugar mais alto, quando um jau for a passar por ti, trata logo de descer do teu poiso até ele passar, ou és um homem morto, porque ele não consentirá seja a quem for, muito menos a um estrangeiro, a ousadia de cuidar que pode ficar mais alto que ele. Por essa razão não têm casas com sobrado superior para não terem ninguém a viver por cima da sua cabeça, a qual trazem descoberta e não consentem nela qualquer peso ou carga, ainda que por isso os matem. E muito menos deixam que alguém lhes toque na cabeça, tomando tal gesto por uma ofensa mortal.

Ficara a saber que o povo de Java prezava ao extremo as cortesias e zumbaias, a que todos obedeciam, dos mais baixos para os que lhes estão logo acima, numa interminável cadeia de preito e menagem até à pessoa do rei. Tem procedido sempre com muito acatamento, de modo a não causar melindres, porque à menor ofensa à sua honra, os jaus fazem-se amoucos para se vingarem, matando às crisadas num acesso de frenesim não só a quem os ofendeu, mas a todos aqueles a que possam lançar mão, antes de serem presos ou mortos.

Passados quase dois meses de ali estar a fazer pacificamente as suas mercancias, não lhes achara grande fundamentação para a dita prosápia, antes pelo contrário, parecera-lhe uma nação de pouca polícia, sendo as habitações da gente comum humildes cabanas, feitas de canas de bambu entretecidas e cobertas de barro, com tectos de folhas de palma, sem janelas, com uma entrada baixa por onde passa a luz, de um ou dois aposentos para toda a família e algumas galinhas, além de uma varanda um pouco mais alta, onde as mulheres fazem os seus trabalhos de fiar, tecer, amassar e cozer.