As fazendas dos navios portugueses tinham grande aceitação entre os comerciantes da terra. Traziam tecidos de algodão para serem vendidos por sapecas ou caxas, umas pequenas moedas de cobre chinesas, de pouca valia, furadas no meio e enfiadas em baraços ao modo de colares, às duzentas, quinhentas ou mil. Passavam então a Bima, na Sumbawa, uma das muitas ilhas de Sunda, para resgatarem com essas caxas, arroz ou panos de algodão de pior qualidade que iam trocar a Banda e às Molucas por noz, maça e cravo e, às vezes, em Timor, por sândalo. Nesta viagem demorava-se oito vezes mais do que numa derrota directa, mas conseguia-se um lucro muitíssimo maior.
Fernão sorri, lembrando-se da triste figura que fizera, ao procurar saber se era verdade o que ouvira contar sobre uma árvore que tinha dentro do seu tronco uma verga de ferro de tanta virtude que nenhuma arma podia ferir quem trouxesse uma lasca dela junto da sua carne; se era por a usarem que os jaus se mostravam tão destemidos guerreiros que, conquanto lhes pusessem uma lança nas barrigas, eles se enfiavam por ela sem receio algum, até chegarem ao adversário para o matarem primeiro. A primeira vez que o língua traduziu a sua pergunta, a um bando de jaus, foram tantos os risos e as zombarias que Fernão, de tão corrido e humilhado, não se atrevera a continuar com a sua inquirição sobre a árvore milagrosa. Ou se tratava de um mito ou os maganos faziam segredo dela, para que nenhuma nação estrangeira lhes roubasse a vantagem da invencibilidade, reproduzindo a árvore fora de Java para seu próprio proveito.
Quando a multidão dispersa, Fernão regressa à sua pousada, um pouco apreensivo quanto aos sucessos que se adivinham, com os portugueses ali presos pelas monções, impossibilitados de passarem a Malaca ou seguirem para a China como pretendiam, para venderem os produtos que tinham resgatado na ilha.
Finda a concertação do negócio com o sultão que a trouxera a Banten, Niyai Pombaya partiu para o porto de Japara, a dar conta da sua missão ao Pangeran, deixando Hasanudin a preparar o seu exército e armada para, no mais breve tempo, se ir juntar ao sogro.
186 Ao anfiam chamam os árabes ofiom e afiom, da palavra grega opio, feito das lágrimas das dormideiras.
III
Seja o primeiro para um banquete e o último para uma batalha
(tâmil)
Bráta Yúdha – A Guerra Santa ou Guerra de Woe187:
XCVII. À cabeça do cortejo toma lugar Bíma, o audaz, o bravo;/ Fremindo impaciente pelo combate, e desdenhoso do adversário,/ Permanece de pé, girando o seu gáda no ar por divertimento./ Afeito a conquistar, tanto no mar como nas montanhas, elefantes e leões tornaram-se o seu espólio.
XCVIII. Na sua fúria ele é tão poderoso como o elefante da floresta:/ E, agora, em marcha, anseia pelo chefe hostil, e lança o seu desafio;/ A sua voz, como o rugir do leão, é ouvida por todos,/ O som retumba através dos três mundos.
XCIX. Atrás dele segue Arjúna, sentado num esplêndido carro de variegado ouro, e abrigado por um páyung dourado,/ Flamejante como uma montanha ardente e ameaçando com a destruição Astína e os seus príncipes./ O seu estandarte, o macaco, ondula alto nos céus, fustigando as nuvens, na sua corrida;/ E como o seu séquito brilha e refulge, relâmpagos cintilam com o trovão em presságio de vitória.
C. Junto de Palgúna vem Aria Nakúla, com Sedéwa, num carro verde de precioso lavor./ Semelhantes em beleza a duas divindades do céu, vão sedentos do ataque aos jovens de Astína,/ Resplendecem de fulgor. O pendão flutua no ar como uma nuvem negra ameaçando chuva, e espalhando pétalas olorosas de flores./ Prontos para o combate, como o trovão antes do clarão do relâmpago; em marcha, o som assemelha-se ao zumbido das abelhas em busca de comida.
CI. Lentamente seguem Aria Utára, com Soíta, também montados num carro de guerra;/ Depois, Drásta Driúmna e Drypádi, com Sikándi junto dela;/ Com incontáveis carros, elefantes e cavalos, avança a cavalaria, enchendo todo o espaço:/ Todos animados em espírito, como peixes reanimados por súbita chuvada.
CII. E eis que surge Drupádi, reclinada numa liteira de ouro, e resguardada por um páyung de penas de pavão:/ Era como a imagem dourada de uma deusa, com o longo cabelo solto e livre ondeando ao vento./ Ela não o prendeu: deixa-o esvoaçar como uma nuvem ameaçadora, à espera do momento da chuva de sangue;/ Fiel ao voto de só apanhar a cabeleira e atá-la num nó, depois de se banhar no sangue do inimigo.
CIV. Então avança Krésna no seu carro dourado e abrigado por um páyung branco;/ Chefiando com prazer a retaguarda com os príncipes mais velhos e a hoste real./ Perto vêm o seu chákra e os príncipes do seu séquito montados em elefantes brancos;/ O grito dos elefantes ergue-se claro e alto, unindo-se à fanfarra de sons saídos de todas as hostes.
O rajá de Sunda fora recebido com todas as honras pelo sogro, à chegada a Japara com a sua frota, na qual vinham quarenta portugueses a quem pedira publicamente e com muito empenho que o acompanhassem naquela empresa, como artilheiros, em troca de grandes benefícios nas suas fazendas. As suas mercadorias ficariam isentas de tributos, cada português receberia cem cruzados pela campanha e outros trezentos seriam dados aos herdeiros de todos os que tivessem a honra de morrer nas suas fileiras.
O pagamento era muito generoso, para mais tendo o pedido a força de uma ordem, de modo que apenas ficaram com o junco o capitão Martim Esteves com cinco portugueses, que se escusaram por razões de doença e por haver necessidade de não deixar o navio desamparado. Fernão fora apanhado na rede, sem possibilidade de escapar mesmo se quisesse, consolando-se com a ideia do negócio vantajoso do soldo e dos benefícios da alfândega que lhe trariam a fortuna desejada, desde que se não deixasse matar, sendo a sobrevivência um exercício em que ele se tornara exímio.
Tinham chegado a Panarukan aos onze dias de Fevereiro de mil quinhentos e quarenta e seis. Trenggana viera no navio do rei de Pasuruan ou Passervão, o almirante da sua fortíssima armada, porém, como o rio era muito assoreado e só permitia a navegação de embarcações de pequeno calado, fizera desembarcar toda a sua gente num lugar a duas léguas de distância e enviara uma hoste nos barcos a remos para queimar todos os navios que estivessem no porto, o que fora feito sem grandes perdas de gente. Hasanudin, com o posto de general, seguira para Panarukan por terra com o exército, reforçado pelos contingentes de Bornéu, vassalo de Demaa, e de Achem, para assentar o arraial em lugar vantajoso.
Durante dois dias, os capitães do Pangeran com os seus homens, seguindo as indicações dos mercenários turcos e portugueses, cercaram a cidade com valos muito altos, terraplenos fortificados de fortes vigas, para suportarem as grossas peças de artilharia, dispostas de modo a baterem os pontos mais fracos das defesas dos adversários que, por sua vez, se haviam barricado em bastiões, tranqueiras e taludes providos de fortíssima artilharia.
Os jaus tinham muito boas armas e gozavam da merecida fama de lutarem destemidamente, sendo também bons artilheiros, ensinados por um renegado algarvio, mestre de fundição, enviado pelo rei de Achem, com quem aprenderam igualmente a fazer bombardas, além de espingardas, espingardões e muitos artifícios de fogo. As suas espadas, lanças e adagas eram rijas e fortes, tornando-se quase invencíveis quando se faziam amoucos e saíam para o ataque, dispostos a morrer matando, uma visão arrepiante a que Fernão em breve iria assistir.
Nessa noite, no campo bem vigiado, descansavam e folgavam com música e canções, a que não era alheio o consumo do arac, a sua aguardente, porque o dia seguinte fora aprazado para o primeiro assalto e, se lá entrassem pela força das armas, os portugueses dariam um papo quente188 à cidade, com permissão d’el-rei de Sunda. Eram danças guerreiras, muito bem executadas, a que não se eximiam os nobres da classe mais alta, competindo em pares, como num duelo, nus da cinta para cima e nas pontas dos pés, com os corpos cobertos de pó amarelo, ora meneando o cris e o escudo, ora retesando o arco e soltando a flecha, ou ainda atirando a lança ao ar e apanhando-a com destreza e galhardia, evoluindo com o corpo e os braços em graciosos movimentos ou atitudes, ao som do gámelan. Para Fernão era mais fácil entender a dança do que a língua, porque os jaus falavam diferentes idiomas entre si, mudando conforme a qualidade ou importância daquele com quem falavam.