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O campo era um verdadeiro mostruário dos costumes e crenças daquele povo, que a imposição das leis de Mafamede não lograra extirpar. Já em Banten, depois em Japara, assistira às suas artes de adivinhação e astrologia, em que consultavam certas aves, sacrificando animais, cujas carcaças deixavam num espaço aberto. Chocalhavam então os ángklung, uns instrumentos musicais feitos de bambu, e imitavam o grito dos corvos; se as aves não viessem comer ou ficassem a pairar no ar, tinham de fazer mais danças ou sacrifícios para poderem partir. Tanto em Banten como em Japara, os corvos tinham comido a carne do animal sacrificado e partido na direcção de Panarukan, o que fora de bom presságio para a sua campanha. No arraial as adivinhações faziam-se para conhecerem o resultado da guerra, a quem pertenceria a vitória e se sairiam vivos ou mortos do confronto.

Com a liberdade que a ficção concede ao contador de histórias de se passear a seu bel-prazer pelos tempos e lugares da acção, podendo até arrogar-se o dom da ubiquidade a fim de narrar sucessos simultâneos – prática a que o próprio Fernão recorreu neste episódio da sua Peregrinação –, a narradora irá transportar o seu leitor para dentro da cidade de Panarukan e dar-lhe conta, em discurso directo, do estado de alma do rajá sitiado e dos seus súbditos, na antecipação do assalto dos invasores.

– Como pudemos consentir nesta afronta? Trabalharam dous dias inteiros na fortificação do seu arraial sem que ninguém lhes fosse à mão.

– Decerto nos tomam já por covardes que, como fracas mulheres, nos mantemos escondidos em buracos ou resguardados por trás das defesas da cidade, com medo de os defrontar.

– É uma gente vil, que nos quer obrigar a deixar a fé dos nossos antepassados, em que fomos criados por nossos pais, impondo-nos uma nova crença por incitação dos farazes estrangeiros.

– Prometem-nos a salvação tão-só com lavarmos as partes traseiras, não comermos porco e casarmos com sete mulheres. Menos afronta é ser derrotado numa surtida, do que ver el-rei cercado por tal gente!

– Senhor, dá-nos licença para irmos esta noite apalpar o terreno inimigo e lavar a nossa honra. Cremos que a sua gente estará cansada do trabalho e pouco senhora das armas, sem forças para nos fazer rosto, no primeiro ímpeto. que não esperam.

O rajá é tão mancebo como aqueles que lhe falam, cheios de brio e com o sangue em fogo nas veias, a fina flor do seu reino. Sabe-se amado por eles, assim como pela gente mais velha e até pelos estrangeiros que vivem em Panarukan, não só pelas grossas mercês, favores e honras que concede a todos em abundância, mas também pelas boas palavras e modos como os trata, não havendo um único homem, rico ou pobre, no reino que não esteja disposto a aventurar mil vezes a vida por ele.

– Que diz o meu conselho sobre esta saída? – pergunta, desejoso de que a resposta dos mais velhos e prudentes seja favorável ao pedido dos mancebos.

São muitos os pareceres a favor e contra, como sempre sucede quando se confrontam opiniões, partidos ou poderes, mas, atendendo à urgência do negócio e ao perigo que correm de ver o reino tomado, chegam por fim a um consenso:

– Por muito que a fortuna nos seja contrária nessa saída contra os nossos inimigos, será menos desonroso do que aceitar sem luta a ofensa que fazem a Vossa Alteza, querendo assenhorear-se do reino e converter-vos à força à religião de Meca.

– É próprio do leal vassalo morrer pelo seu rei! – bradam os mancebos numa só voz, apertando o punho dos crises, com os olhos a brilharem de fervor guerreiro.

– Não convém dilatar o ataque – aconselha um capitão experimentado nos combates com os mouros. – Sairemos de noite e, com os nossos feitos de armas, mostraremos aos que renegaram a fé dos nossos antepassados o amor que temos ao nosso bom rei. O nosso sangue será a melhor herança que deixaremos aos nossos filhos.

Ainda antes das duas horas da madrugada, o largo terreiro ou paseban, diante dos paços reais, enchera-se de gente armada, ansiosa por participar na expedição nocturna e os quatro capitães escolheram os homens para formarem as suas companhias.

– Ninguém poderá levar a cabo esta empresa melhor do que vós – diz-lhes o moço sultão, alçando a voz para se fazer ouvir por sobre as cabeças inclinadas dos seus guerreiros que, como um só homem, se prostraram no solo ao vê-lo. – O meu coração está convosco. Dentro dele tenho os vossos capitães e a cada um de vós como irmão, por serdes vassalos tão leais que quereis lavar a minha honra com o sangue dos meus inimigos.

Terminada a sua fala que trouxe lágrimas a muitos olhos, tomou um copo de ouro e foi dar de beber por sua mão aos homens que lhe estavam mais cerca, pedindo perdão aos restantes por não o poder fazer a todos, devido ao adiantado da hora e à preparação necessária para o trabalho que os esperava. Cheios de ânimo, os soldados começaram a cuidar da alma e do corpo para se fazerem amoucos, untando-se com minhamundy, um unguento perfumado, enquanto oravam aos seus deuses.

As quatro companhias de guerreiros sedentos de sangue saíram por distintos lados da cidade, em silêncio, e caíram sobre o arraial dos descuidados invasores como uma horda imparável, indiferentes à dor e ao medo, de olhos acesos em fúria, narinas frementes, espadas e lanças volteando em louco frenesim, enterrando os corpos nas lâminas dos surpreendidos adversários, metendo-se por elas para lhes chegarem com as suas e arrastá-los consigo para o reino dos mortos.

Uma hora durou o combate e, por fim, os amoucos de Panarukan retiraram-se vitoriosos para a cidade, com poucas baixas, levando cativos três reis e oito pati, que são como duques, deixando atrás de si o campo do Pangeran de Demaa quase destroçado e juncado de milhares de mortos. Hasanudin foi ferido com três lançadas e só não perdeu a vida nem foi feito prisioneiro porque os quarenta portugueses o defenderam corajosamente, com a morte de catorze companheiros. E o próprio Pangeran esteve à beira da morte, por causa de uma zargunchada que o atravessou de lado a lado e, embora não fosse um golpe mortal, fizera-o cair ao rio, de onde o retiraram mais tarde meio afogado.

Trenggana sacudira o médico que lhe pensava a ferida, mal se apercebendo da dor, com a raiva que sentia pela pesada derrota que lhe manchava a honra. Culpava o genro pelo desaire, visto ser o general do campo responsável pela ordem no arraial.

– Tanta gente morta e ferida no começo do cerco, Hasanudin, sem sequer acometermos a cidade? Tão má vigia puseste no campo que por duas vezes os nossos homens foram desbaratados, antes mesmo de os capitães os poderem pôr em ordem de combate ou até de tomarem as armas!

O sultão de Sunda aceitava os remoques, enfiado e corrido, sentindo-se culpado da muita desordem que houvera em todos.

– Trata de fortificar de novo o arraial, porque te juro sobre este livro do profeta Muhammad que não deixarei o cerco, enquanto não arrasar a cidade e passar toda a gente à espada sem poupar a vida a ninguém.

Diz-se que o homem põe e Deus dispõe, um ditado certeiro no presente caso porque passados três meses, apesar de todos os engenhos de guerra, dos inúmeros assaltos à cidade e de alguns milhares de mortos de ambos os lados, Panarukan continuava de pé, inconquistada.

Os sitiados viam com desespero a grande serra feita de entulho e terra, fortificada com vigas, que em nove dias os inimigos tinham erguido diante da cidade e lhes tapava o horizonte, de onde os bombardeavam constantemente com pesada artilharia, causando-lhes grandes danos.