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– Senhor, se nada fizermos, a nossa perdição é certa – disseram os quatro capitães dos amoucos ao sultão de Panarukan. – Dá-nos licença para acometer e destruir aquela serra, como fizemos ao seu arraial, no início do cerco. Vê como os teus soldados se oferecem para vencer ou morrer.

El-rei saiu ao terreiro coberto de amoucos, que o saudaram com um grande grito. Ali estavam todos os que podiam pegar numa lança, espada ou arco, quase nus, com os corpos untados de minhamundy, como remate da sua determinação de morrer pelejando.

– Sois, em verdade, os Tigres do Mundo! – bradou-lhes, cheio de orgulho pela valentia e lealdade dos homens. – O comando desta missão pertence aos vossos quatro capitães, mas desta vez eu também irei convosco, como capitão general.

A ovação dos soldados encheu de ânimo o seu jovem coração e o soberano retirou-se a fim de se preparar para o combate, aprazado para quando nascesse o sol, que daria no rosto dos artilheiros inimigos, ofuscando-os.

O assalto durou o tempo de Fernão rezar dois ou três credos, vendo estarrecido como os amoucos acometiam a fortificação sem medo e com total desprezo da morte, os corpos brilhando sob os raios de sol como uma auréola, desbaratando os turcos e achens que a defendiam. Acudiu Trenggana, em pessoa, com a sua companhia de amoucos, que também os tinha igualmente dispostos a reconquistar a serra de entulho, agora nas mãos dos panarucões, ou a morrer na peleja.

Entrincheirados nela, os sitiados defenderam-na enquanto puderam, causando pesadas baixas ao invasor, embora à custa de muitas vidas e sangue da sua gente. Era hora de vésperas, quando o sultão de Panarukan, que apesar de muito ferido se mantinha no seu posto, deu ordem para lançarem fogo à serra por várias partes e se retirarem para a cidade. As chamas propagaram-se pelo entulho, faxina e vigas da fortificação como por palha, não tardando a chegar aos barris das munições que rebentaram com medonho fragor, transformando a serra num braseiro, que não havia quem o pudesse sofrer a mais de um tiro de besta em redor. Os sitiados tinham vencido de novo Trenggana, o poderoso imperador de Java.

187 Poema épico em káwi, língua clássica de Java.

188 Dar um papo quente – saquear à escala franca um lugar, um navio; ter liberdade de saquear.

IV

Quem caminha por atalhos, nunca lhe faltam trabalhos

(português)

Tratado de paz entre El-Rei D. João III e os habitantes da ilha de Sunda, e auto de posse que se tomou, em nome do dito Rei da mesma ilha (1532):

Em nome de deus, ámen. Saibam quantos este instrumento de fé e certidão de aquisição e filhamento e posse virem, que no ano do nascimento de nosso senhor Jesus Cristo de mil e quinhentos e trinta e dous anos, aos vinte e sete dias de janeiro da dita era na ilha de Sunda e porto d’Agacim , estando aí Lopo Álvares como procurador abastante del Rei nosso senhor, para o caso e auto abaixo declarado , concertou em nome do dito senhor Rei e contratou com o Xabandar da terra e assi com outros mercadores principais e outros moradores e lhes comprou muitos mantimentos da terra e venderam os portugueses muitas roupas e mercadorias que levavam a caxas, moeda da terra, a troco d’ouro e escravos e escravas

Dali se partira a frota e fora surgir ao porto de Panaruca e ali achara homens portugueses com mercadorias, a saber, cravo, noz, maça e roupas, esperando monção para partirem para a cidade de Malaca.

E logo meteu na dita ilha de Sunda e porto de Panaruca um padrão de pedra grande e nele esculpidas as armas do dito senhor Rei em sinal e lembrança de como a dita ilha fora descoberta pelas gentes e vassalos do dito senhor, o qual padrão foi metido por Lopo Álvares, procurador do dito senhor, na primeira volta do rio do dito lugar de Panaruca.

[E disse que assi] adquiria o dito Rei todo o direito, posse e senhorio da ilha de Sunda e assi posse ou quase posse da negociação e trato e comércio da dita ilha e tudo aquilo que por razão de assi ele meter o dito padrão e assi por causa do dito descobrimento o dito senhor pode e deve com direito haver, ter e adquirir por qualquer modo, via e maneira que seja a posse ou quase posse do dito trato, negociação e comércio da dita ilha de Sunda.

Trenggana, apesar dos sucessivos desaires e da mortandade do seu exército, não desistia da conquista da cidade e, fazendo orelhas moucas às palavras dos seus capitães que aconselhavam a retirada, ordenou-lhes que preparassem os seus homens para um novo assalto, seguro de que os sitiados já não teriam forças nem munições para a defenderem, para mais tendo o seu rei sido ferido com gravidade, segundo soara pelo arraial.

O sultão de Sunda ainda não se esquecera dos remoques do sogro, nem da pública humilhação que sofrera, no início do cerco, a que só o desastre do próprio Trenggana, no último ataque dos sitiados à serra de entulho, trouxera algum lenitivo. Não queria correr o risco de novo desastre e não estava tão seguro como ele da fraqueza dos defensores da cidade, os quais já tinham dado bastas provas de estarem dispostos a defendê-la enquanto lhes restasse um sopro de vida.

Pusera soldados de atalaia no local onde os seus espias lhe tinham dito que os sitiados faziam entrar na cidade as provisões que os camponeses lhes traziam às escondidas das suas lavouras e a sua previdência fora recompensada com a tomada de nove homens, que ele mandara pôr a tratos a fim de conseguir as informações para concertar o seu ataque.

Oito deles morreram despedaçados às mãos dos carrascos, que não lhes deram tréguas, procurando arrancar-lhes os segredos das defesas de Panarukan e tudo o que pudesse servir ao senhor de Demaa para levar a cabo a sua conquista. Os resultados tinham sido pouco satisfatórios, porque as vítimas nada sabiam ou eram tão corajosas que preferiam morrer a trair o seu rei. Exasperado, o general vai assistir ao interrogatório do último prisioneiro, para se assegurar de que não morrerá antes de lhe dizer o que precisa de saber.

– Sou português – grita o homem, no dialecto panarucão, ao receber o primeiro trato com pingos de óleo a ferver e repete: – Sou português, nada sei do cerco.

Hasanudin faz cessar os tratos e manda recado ao lugar onde pousam os portugueses, para que venham sem demora à sua presença. Fernão e os vinte e cinco companheiros estão igualmente desesperados com a longa guerra, temendo que os impeça de partir naquela monção, no barco que está surto no cais de Banten há mais de três meses, com a chusma à sua espera. Catorze homens haviam perdido a vida no primeiro assalto e, no último, à serra de entulho, outros vinte tinham sido feridos com muita gravidade, de modo que só restam seis, com ferimentos mais ligeiros, ainda capazes de pegar em armas e acudir, a custo, ao chamado d’el-rei de Sunda.

– Este cativo diz que é português. Vede se fala verdade.

O homem, com cerca de sessenta anos, parece aterrorizado e balbucia palavras incompreensíveis, que não lhes permitem reconhecer a língua, embora os portugueses não tenham dúvidas de que se trata de um europeu e decidem salvá-lo dos tratos e da morte, com uma mentira. Fazem o dódok, sentando-se nos calcanhares, o corpo prostrado e as mãos postas, erguidas até à testa.

– O homem é português, como nós, Alteza – assegura Fernão pela voz do língua. – Fazei-nos mercê da sua vida, pois tudo o que souber da cidade, no-lo dirá de boa vontade, logo que sossegue, sem necessidade de tratos.

Rasteja sobre os calcanhares e joelhos, ao modo dos jaus, e beija-lhe o peito do pé, contente por não ter de lhe beijar a sola do sapato, como a gente do povo.

– Levai-o convosco e tratai de apurar o que sabe, pois o tempo urge.

Os seis portugueses retiram-se, recuando de joelhos, com o cativo a rastejar atrás deles. O homem vai tão fora de si que, durante o caminho, não se conseguem entender em nenhum dos idiomas europeus seus conhecidos.

– Deixai-o em paz. Pode ser que algum dos nossos companheiros fale a sua língua, seja ela qual for – remata Fernão.