Seguem em silêncio até ao lugar onde pousam os feridos, numa tenda que haviam improvisado para lhes dar algum conforto.
– Sois mesmo português? – perguntam de novo, vendo-o já sossegado.
O homem solta as lágrimas que há muito trazia presas no peito.
– Até hoje não sabia nada de vós, senhores e irmãos meus – diz, por fim, quando domina a comoção. – Chamo-me Nuno Rodrigues Taborda e sou português de pai e mãe, natural de Penamacor. Vim do reino no ano de mil quinhentos e nove na armada do marechal D. Fernando Coutinho, na nau S. João, de que era capitão Rui Diaz Pereira. Afonso de Albuquerque, que Deus tenha em glória, conhecendo-me por homem honrado, fez-me mercê da capitânia de um bergantim da sua frota e com ele estive na tomada de Goa e de Malaca, assim como nos combates de Calecut e Ormuz e demais empresas que cometeu. Tomei parte em todos os feitos honrosos que se fizeram também no tempo dos governadores Lopo Soares, Diogo Lopes de Sequeira e de todos os outros até D. Anrique de Meneses.
– Como veio vossa mercê aqui parar? – quer saber Rui de Moura.
– Que fazeis nesses trajos e com insígnias dos gentios? Não sois cristão?
Taborda baixa os olhos e um forte rubor sobe-lhe ao rosto.
– Eu vinha na frota de Francisco de Sá, a quem el-rei mandara fazer a fortaleza em Sunda. O meu bergantim, S. Jorge, naufragou nesta costa, há já vinte e três anos. Dos três portugueses que escapámos e viemos ter a esta terra, hoje só eu estou vivo. Esta gente acolheu-nos bem, mas sempre apertando connosco para nos convertermos à sua Lei; resistimos enquanto pudemos, porém, como a carne é fraca, a fome era grande, a pobreza muito maior e a esperança da liberdade de todo perdida na distância do tempo, cedi por fim aos seus rogos e aceitei a sua religião, vivendo como um eremita e curandeiro, com a protecção do pai deste rei, que me favoreceu sempre. O filho, que é tão bom e generoso como o melhor dos reis cristãos, faz o mesmo, por isso, ontem fui chamado para vir curar dous homens nobres dos principais desta terra e quis Nosso Senhor que me tomassem estes perros mouros. E vós, que fazeis com eles? O rei de Demaa é um tirano mouro que quer impor a Lei de Mafamede a todos os gentios de Java.
Fernão estremece, com o remoque do cativo. De facto, poderia ser mais pecaminoso, aos olhos de Deus, lutar ao lado de muçulmanos intolerantes contra gentios idólatras, ajudando-os a espalhar a sua religião, inimiga figadal da cristã, do que renegar a sua fé pela necessidade de matar a fome ou salvar a própria vida. Sente os fios da memória enredarem-no de novo na teia do tempo. À semelhança do que sucedera com Vasco Calvo, na China, viera encontrar Taborda numa ilha longínqua de um mar quase ignorado. Quantos mais portugueses estariam perdidos neste vastíssimo mundo, vivendo entre raças estranhas, sem esperança de serem resgatados um dia, porque os seus companheiros e os seus chefes os julgam mortos? Esse medo, transporta-o ele consigo, em todas as viagens, como uma ameaça constante que, nos momentos de maior perigo, o faz preferir a morte ao abandono num lugar ignoto, sem retorno.
– Como foi que naufragastes? – pergunta Rui de Moura que parece desconfiar do renegado.
– Que sucedeu a Francisco de Sá? Não se fez nenhuma fortaleza em Sunda!
As perguntas dos companheiros arrancam Fernão aos seus pensamentos, já esquecido da melancolia que ultimamente lhe tem ensombrado a alma. Taborda, tal como Calvo, era um veterano das primeiras campanhas da Índia, ao lado de Pêro de Faria, Fernão de Magalhães, Francisco Serrão, António de Abreu, Fernão Peres de Andrada e outros dessa panóplia de grandes guerreiros e descobridores ao serviço de Afonso de Albuquerque e dos governadores e vizo-reis que lhe sucederam. Presta um ouvido atento à história de Taborda, contada num português de estranho acento, com muitos termos jaus à mistura, para lhe dar informações do que ouvira a Pêro de Faria e ele não podia saber.
Francisco de Sá de Meneses foi enviado por el-rei D. João III, no ano de vinte e seis, com uma armada de seis navios e trezentos homens, a dar início à construção da fortaleza de Kalapa, segundo o tratado assinado quatro anos antes com o rei de Sunda. Os castelhanos andavam a rondar as Molucas e as fortalezas serviam para dar apoio aos navios e homens que patrulhavam aqueles mares, com ordens para afundarem qualquer navio espanhol que apanhassem pela frente, sem fazerem cativos nem reféns.
Pêro de Mascarenhas, o capitão de Malaca que tinha sido escolhido por el-rei para governador da Índia, antes de partir para Goa, decidiu destruir de vez o poder de Mahamed. Com a sua armada, a que se juntou Francisco de Sá com os seis navios, onde eu ia por capitão do bergantim S. Jorge, Mascarenhas foi atacar a ilha de Bintão, o reduto quase invencível onde o sultão derrotado se acoitava. Desbaratou-lhe a frota e o exército, tomando-lhe a ilha, com uma estratégia superior à de Afonso de Albuquerque e sem perder um único homem.
Terminada a conquista de Bintão, Francisco de Sá despediu-se e partiu com a frota para Sunda. O capitão, que tinha escapado incólume, com todos os oficiais e guarnições dos seus navios, aos maiores perigos da batalha, ia meter-se sem o saber em piores trabalhos, à sua chegada a Sunda.
Falatehan, um caciz mouro oriundo de Samatra, viera de Meca para pregar a Lei de Mafamede na ilha de Java, fazendo-o com tanta dissimulação e manhas de santidade que lograra converter o rei de Demaa que lhe dera a filha em casamento. O caciz apoderara-se do reino hindu de Mojopahit, matando o rei que dera licença aos portugueses para a construção da fortaleza e forçando os gentios à conversão. Declarara guerra aos cristãos, não os consentindo na sua terra e lançara uma fatwa, proclamando ser obra santa que faria ganhar o paraíso a quem matasse os portugueses que naufragassem nas suas costas.
Sendo a nossa frota tanto avante como a ilha de Lingga, deu-nos um tempo tão forte que dispersou os navios e, durante muitos dias, soprou-nos como folhas secas a voar sobre as águas. Não podendo pairar, fomos forçados a arribar a estas costas, pois só Duarte Coelho logrou tomar o caminho de Malaca com a sua nau. Uma galé e uma fusta arribaram com muito trabalho ao porto de Sunda, mas o meu S. Jorge deu à costa e os trinta portugueses que se salvaram a nado foram de imediato mortos pelos mouros da terra, com excepção de nós os três que, vendo o massacre, esperámos pela noite agarrados a um madeiro, para podermos sair da água sem sermos vistos.
Francisco de Sá conseguiu juntar os restantes navios e foi lançar ferro no porto de Banten, enviando recado a el-rei, a lembrar-lhe o tratado feito com o seu antecessor e, confirmando a amizade dos portugueses, pedia-lhe permissão para construir a prometida fortaleza. Como ele não consentiu, o capitão mandou desembarcar o seu exército para ocupar a terra e “fazer por força o que ele não queria consentir por vontade”, contudo, a resistência feroz dos mouros forçou-o a retirar-se para Malaca com quatro mortos e muitos feridos.
Quando ele se cala, os companheiros mantêm-se em silêncio durante uns momentos, espantados com a sua história.
– Segundo me disse o capitão Pêro de Faria – recorda Fernão –, só em mil quinhentos e trinta e três voltou a ser enviada uma armada, aqui a Java, sob o comando de Lopo Álvares, com a missão de negociar um novo tratado de paz para o estabelecimento de uma fortaleza, aqui mesmo, em Panarukan, que, não chegou a ser feita.
– Se vossa mercê quiser ir connosco quando volvermos a Sunda – sugere Rui de Moura, em modo de consolação –, daí poderá seguir para Malaca, onde prazerá a Nosso Senhor que acabará a vida a Seu serviço.
– Oh, sim, levai-me convosco, pelo amor de Deus! – brada Taborda, com os olhos marejados de lágrimas, caindo de joelhos, com as mãos postas numa prece. – A cousa que mais desejei, nestes vinte e três anos de exílio, foi viver de novo com cristãos.