– E tudo se perdeu? – repete Pêro, incrédulo, quando o padre se cala a retomar o fôlego. – Como se pode dar descaminho a um tesouro de tamanha grandeza?
Francisco Álvares encolhe os ombros, com desânimo ou resignação:
– Trouxemos também dois órgãos de foles e dois sinos grandes! A embaixada ia mui bem servida de gente, a começar pelo velho Duarte Galvão, um grande letrado que já fora como embaixador de Portugal a várias cortes de Europa e ao Papa. Vinham vinte mestres dos ofícios mecânicos, das armas e das artes da música, como organistas, pintores e até um imprimidor para o serviço do Preste. Só faltou vontade ao governador Lopo Soares de lhe dar conclusão, como se esta missão, por ser tão querida a Afonso de Albuquerque, lhe fosse especialmente odiosa.
– Se tal embaixada aqui tivesse chegado, quanto não haveria de ser o espanto e o acatamento do Preste e de todo este povo pelo reino de Portugal! E a minha missão estaria finalmente cumprida.
O confessor, ao notar o tom magoado da sua voz, muda de assunto:
– Mateus disse a el-rei D. Manuel que o Preste tem sob o seu poder sessenta e seis reis cristãos e oito mouros, no entanto, por onde passámos não vimos esses reinos grandiosos, cheios de palácios de que falava a carta do seu antepassado. Ou quaisquer cidades e vilas prósperas. As povoações não passam de aldeias e lugares de pastores, mais pobres do que os nossos.
– Os abexins são mui gravasolas10 e fazem-se grandes, maiores do que são de verdade – comenta Pêro, soltando uma risada. – Contam como reis os garâds e xums mais poderosos, que governam as províncias ou os grandes senhorios. Eu próprio, com o meu gulto ou feudo de muitas terras e vassalos, já entro também nesse rol. Perdoai-me, reverendo padre, a interrupção e contai-me por miúdos o que acaeceu à embaixada, que morro de o saber.
O religioso recolhe-se um pouco, a ordenar pensamentos, retomando a narrativa dos tristes sucessos que havia presenciado ou mesmo em que tinha participado como elemento apaziguador:
– Nos começos do ano de dezassete, Lopo Soares decidiu-se por fim a ir em busca da armada dos rumes, que era a maior ameaça para os portugueses da Índia, e de caminho deixaria a embaixada em qualquer lugar sujeito ao Preste. Duarte Galvão queria concertar com o imperador acções dos portugueses e abexins contra Meca, no mar Roxo, ao mesmo tempo que outras nações cristãs combateriam a Síria a fim de abrir caminho para Jerusalém.
– Era essa também a estratégia do Preste, ou antes, da Itegê Eleni e do Abuna, por verem como a Etiópia estava quase sem acesso ao mar, com todos os portos, desde Suaquim a Zeila, nas mãos dos mouros. Uma armada cristã a percorrer estas costas seria a salvação.
– Afonso de Albuquerque e D. Francisco de Almeida tinham-no conseguido em parte, porém, nem todos os capitães-mores e governadores eram do mesmo jaez do Terríbil. A nossa armada era fortíssima, levava mil seiscentos e cinquenta portugueses e mil e duzentos malabares, no entanto, só lhe aconteceram desandâncias, graças em grande parte ao pouco mérito de Lopo Soares.
O padre Francisco Álvares faz uma pausa que Pêro da Covilhã aproveita para lhe servir uma bebida.
– Porque dizeis isso?
– O governador levou a armada para o estreito de Bab-el-Mandeb e chegou a Djidda ou Judá no domingo da Pascoela. A entrada no porto fazia-se por canais estreitos e tortuosos, de manobra dificílima e Lopo Soares maravilhou até os nossos inimigos pela ousadia de passar com todos os navios através da artilharia inimiga. Porém, quando todos os capitães esperavam ordem para o ataque, ele recusou-se a combater, fazendo orelhas moucas a conselhos e rogos.
– Então foi mesmo verdade o que disseram os dezasseis franges cativos dos turcos em Judá que fugiram com alguns abexins, quando o governador lá foi! – exclama Pêro, com grande sanha. – E eu não os quis crer, ao ouvi-los contar que a armada portuguesa não atacou o lugar, que era mui fraco do lado do mar, tendo-o à mercê do seu fogo, para mais com a grande armada dos rumes varada em terra. Ainda hoje não entendem por que razão se retiraram os portugueses sem dar batalha, tendo a vitória certa.
– Nem ninguém na armada entendeu! – retorque o padre com acalorada indignação. – Duarte Galvão chegou mesmo a encerrar-se com Lopo Soares na câmara, admoestando-o por não combater o inimigo, quando podia de um só golpe desbaratar toda a armada dos rumes, que era o que ali vinham fazer. O governador bradou-lhe que o deixasse em paz, fechou-se no camarote e nunca mais ninguém lhe pôs a vista em cima. Passados três dias, sem dar qualquer razão, fez-se à vela na sua nau, saindo barra fora, com sinais aos outros navios para o seguirem, mau grado os protestos e injúrias dos fidalgos cavaleiros e a grande surriada de apupos dos mouros. Desde então a indisciplina reinou em toda a armada, dando azo à sua perda.
– El-rei D. João que Deus tem – interrompe Pêro, lembrando com saudade o Príncipe Perfeito que nunca deixara de admirar –, escolhia os homens segundo as suas qualidades, valor e mérito, sem jamais atender a peitas ou influências.
– El-rei D. Manuel, pelo contrário, é demasiado crédulo e fia-se muito nos validos emboladeiros. Diz-se ter sido graças às intrigas que Lopo Soares de Albergaria foi substituir Afonso de Albuquerque. Depois da retirada, a armada passou ainda por tantas provações de fome, calmarias e doença que, dos quase três mil homens do início, entre enfermos e sãos havia ao todo mil e quinhentos. Dos portugueses, morreram novecentos!
– E, quanto à vossa embaixada, o governador também nada fez?
– O embaixador Duarte Galvão morreu, creio que de mágoa pela morte do seu filho Jorge e por ver perdida a sua embaixada, quando o governador se recusou a pôr-nos em terras do Preste.
– Depois da morte de Galvão, Lopo Soares não cuidou mais da embaixada?
– Nemigalha! Para se vingar do mal que dele falava a gente, queimou Zeila sem nenhum ganho para a armada, chegando a Adem só com metade da frota, porque os restantes navios se dispersaram a buscar remédio de comer e de beber, pois já ninguém lhe obedecia.
– E Mateus?
– Seguiu viagem comigo até Cochim e ali ficámos a lazerar durante mais dois anos, com o presente d’el-rei D. Manuel para o Preste a desbaratar-se, por míngua de Lopo Soares. que o não pagou. Tal como deixou que se perdesse o crédito dos portugueses, pelos muitos roubos que permitia aos nossos fazerem aos mouros amigos.
– Então, quem vos enviou? Viestes por nova ordem d’el-rei?
– Não. Se estamos aqui, finalmente, foi por obra do novo capitão-mor, Diogo Lopes de Sequeira. Embora não trouxesse no seu regimento instruções para nós, reuniu a pouca gente que quedava da nossa primeira missão com os restos do presente de D. Manuel e trouxe-nos ao porto de Maçuá onde, no dia sete de Abril do ano de mil quinhentos e vinte, recebemos a visita do xum de Arquico, com a sua gente, além de muitos frades do mosteiro de Bizão. Alguns dias mais tarde Sequeira e o Barnagais juraram sobre a cruz amizade e aliança, com a promessa de, dali em diante, ajudarem em tudo as causas dos seus soberanos.
– Foi pena Mateus ter morrido – lamenta o escudeiro –, sem receber merecidas alvíssaras pelo grande serviço que fez ao Preste e pelo muito que padeceu nessa sua embaixada.
– Que descanse em paz! Era um bom cristão e não um mouro falso e traidor, como o quiseram pintar. O governador decidiu nomear D. Rodrigo de Lima por embaixador e, para o acompanhar, o pintor Lázaro de Andrade, o organista Manuel de Mares e eu por termos feito parte da primeira embaixada.
– Uma boa embaixada, em verdade se diga. E, pelo que já ouvi, se ela se fez, foi graças em grande parte à vossa porfia junto dos governadores e d’el-rei!
Francisco Álvares sorri, com os olhos a brilharem de satisfação: