Abraçaram-no comovidos e, entre todos, proveram-no de trajos cristãos e mantiveram-no sempre com eles enquanto durou o cerco, convencendo Hasanudin de que o cativo nunca chegara a entrar na cidade e, por isso, desconhecia tudo o que lá se passava. Juntamente com Fernão, Taborda cuidou dos feridos e queimados com tanto desvelo e saber que muitos lhe ficaram a dever a vida. O mesmo haveria de fazer em Malaca, onde terminaria a sua vida santamente, servindo um ano no hospital dos doentes incuráveis.
V
Se partiste para o norte, segue para norte, não vires para leste, oeste ou sul
(jau)
Inscrição numa pedra na antiga língua Java ou Kawi, no ano de 467:
E os poderes das letras, que são quarenta e sete, fixai-as na vossa mente, para que fiquem dentro de vós. Dispô-las-ei de modo a que as possais desenhar com os vossos três dedos; os hábeis poderão fazer belas letras. Não desprezeis a aplicação das letras, dai a cada uma o seu lugar próprio, porque estas letras são utilíssimas nas transações dos povos deste mundo, enquanto nele viverem.
Assim, para as nações do mundo, o uso das letras abre os corações dos homens ignorantes e faz lembrar aos esquecidos. Porque eu dou indicações aos homens que podem escrever, para que o conhecimento que eu guardo no meu peito possa ser conhecido: e ensinei-vos isto, porque esse conhecimento é a essência do corpo e ilumina-o.
Fernão Mendes Pinto e os restantes portugueses maldizem a ganância que os levou a aceitar a proposta do sultão de Sunda para o seguirem na guerra. A monção da China estava a chegar e, apesar dos sucessivos desaires, o Pangeran de Demaa não desistia de tomar a cidade. As poucas informações que os carrascos arrancaram aos cativos bastaram para lhe dar a certeza da vitória: o moço rajá fora ferido, tinham-lhe matado muita gente e achava-se quase sem munições.
Trenggana mandara os seus porteiros de maças e trombetas a cavalo por todo o arraial, com o pregão de que, dentro de nove dias, todos deveriam estar a postos para o assalto final que ele daria a Panarukan, à escala vista com todo o exército. Durante sete dias o campo fervilhou com os preparativos para a investida, fazendo espadas, machados, lanças, artifícios de fogo e minas, construindo escadas e máquinas de guerra para o assalto às trincheiras e muros que protegiam a cidade. Na manhã do sétimo dia, o Pangeran reuniu conselho com os seus oficiais para concertarem o ataque das suas forças.
Trenggana está impaciente com os debates que se prolongam há horas sem que se chegue a acordo de como, onde e quando se fará o cometimento. Desconfia de alguns senhores que entraram na guerra por obrigação de vassalagem e estão desejosos de abandonar o cerco para volverem aos seus reinos e senhorios. Sente a boca seca e pede ao pequeno pajem que lhe dê bétele para mascar, mas o moço que segura nas mãos a caixa com as folhas da planta não obedece, seja por estar desatento ou porque com o ruído das vozes não ouve a ordem.
O imperador volta a percorrer com os olhos os rostos animados pela discussão, procurando divisar a oposição. O genro dissera-lhe que os aliados temiam perder a vida numa guerra inútil porque, mesmo que tomassem a cidade (o que não era certo, diziam), com a mortandade que não deixaria de se fazer, pouca gente restaria, no fim, para ser convertida à Lei de Mafamede, pois era costume dos amoucos de Blambangan matarem-se juntamente com as mulheres, os filhos e todos os parentes e servidores que os quisessem acompanhar, para não se renderem. Assim prevenido, requerera a todos os senhores que lhe dessem o voto por escrito, para os atemorizar e vergar à sua vontade.
Está a arder de ira e, sentindo mau gosto na boca, volta a pedir o bétele, com o mesmo resultado, porque o rapazola só tem ouvidos para as palavras de guerra e planos de ataque que cada um dos capitães defende.
– Dá-me bétele – repete, já impaciente, embora sem zanga.
O pajem sobressalta-se quando um dos rajás lhe puxa o pano da veste e faz sinal para que sirva o Pangeran. O moço ajoelha-se logo aos pés do sultão, estendendo-lhe a caixa, de onde ele tira duas folhas que mete na boca.
– Não me ouviste? És surdo? – repreende-o num tom distraído, tocando-lhe ao de leve na cabeça, de olhos postos no almirante que fala.
No calor da discussão, ninguém se apercebe do incidente, nem do gesto do Pangeran. Ninguém, excepto o pajem que fica a remoer a ofensa. O imperador, com aquele có de desprezo que lhe dera na cabeça, humilhara-o em público e o filho do rajá de Surabayaa, ao desonrar-se desonrara também toda a sua nobre família. Uma mancha que só poderá ser lavada com sangue. Suspira, enche de novo o peito de ar, pronunciando em silêncio uma prece à deusa da vingança e aos espíritos dos seus antepassados.
Acerca-se do Pangeran em jeito de querer dar-lhe de novo o bétele, porém, em vez da taça empunha o seu pequeno cris de prata, que traz por adorno na faixa da cintura, e enterra-lhe a lâmina no coração.
– Eu sou filho de Patem Pandor, sultão de Surabayaa, não sou um cão que ladra de noite pela rua, ao qual se dá um có na cabeça, para o enxotar!
– Kita mati 189– murmura Trenggana, expirando.
Assim morria, de morte inglória e assaz humilhante, às mãos de uma criança de doze anos, o poderoso Pangeran, conquistador e imperador de toda a ilha de Java, Angenia, Bali, Madura e todas as mais ilhas do arquipélago, diante dos sultões e rajás seus vassalos que, paralisados de pasmo, só demasiado tarde se lançaram sobre o pequeno regicida, manietando-o, enquanto outros procuravam em vão socorrer o soberano agonizante.
O campo dos justiçados erguia-se como uma floresta de sessenta e duas tenebrosas árvores, de corpos empalados, com aves rapaces a bicarem-lhes os olhos e as carnes.
– Espetaram-nos vivos em caloetes grossos, que lhes meteram pelo sesso e lhes saíram pelo toutiço – conta Fernão, com voz trémula e ainda arrepiado do que vira, aos companheiros feridos que não tinham podido assistir ao castigo. – Primeiro foi o pajem, que não passava de um menino e vinha muito escorchado dos tratos que lhe deram para saber se matara el-rei a mando de conspiradores. Apesar de ele ter confessado que só quisera vingar a ofensa que o Pangeran lhe fizera ao dar-lhe um có na cabeça em público, os parentes de Trenggana prenderam e justiçaram também o senhor de Surabayaa, seu pai, com os outros três filhos e todos os seus parentes, acabando-lhe com a geração.
– Isto não vai ficar por aqui – avisa Taborda, preocupado, como bom conhecedor da terra e das suas gentes. – Patem Pandor tinha por aliados e vassalos muitos senhorios em toda a Java, assim como nas ilhas de Bali, Madura e Timor, pelo que correm rumores de que vai haver grandes alevantamentos contra o reino de Demaa.
– Agora que o Pangeran morreu, Hasanudin seguramente porá fim ao cerco para volver a Sunda – alvitra Rui de Moura. – Como genro de Trenggana, tem de se acautelar para não ser assassinado ou apanhado em nova guerra.
– E, se ele não quiser ir, teremos de lhe pedir que nos dê permissão de partir para Banten, a fim de apanharmos a monção. Feridos como estamos, de pouco lhe poderemos já servir nesta guerra.
– Não vos quero assustar – avisa-os Taborda –, mas conheço os panarucões e espero a todo o momento que nos caiam em cima com todas as suas forças, num último combate, aproveitando-se da confusão que reina no nosso arraial, primeiro com os castigos e agora com a discussão sobre se hão-de enterrar Trenggana em solo inimigo e idólatra ou transportar o corpo para Demaa e dar-lhe sepultura no seu jazigo. Como a viagem é longa, o corpo corre o risco de se corromper e de a sua alma se perder.
– O corpo não se corromperá se for metido dentro de uma arca cheia de cânfora e de cal, enterrada num grande junco cheio de terra.
– Como sabes isso? – perguntam várias vozes ao mesmo tempo.
– Trabalhei com embalsamadores na minha terra – retorque-lhes rindo, Rui de Moura. – Eu levo o Taborda, para me servir de língua, e vou aconselhar el-rei de Sunda a usar dessa manha, que é cousa segura, infalível para o corpo chegar ao seu destino incorrupto e sem cheiro.