Hasanudin, que tem grande confiança nos seus portugueses, graças à sua autoridade de general do campo e segundo no comando, depressa convence o conselho dos senhores de Demaa, ansiosos por saírem de Panarukan, de que o cristão não os enganava. Assim, podiam levantar o cerco e partir, logo que tratassem do transporte do Pangeran.
A arca com o corpo preparado do modo indicado pelo português – a quem os rajás deram dez mil cruzados de esmola, por alma do morto, deixando-o muito contente e aos companheiros muito invejosos – foi levada para o junco e metida dentro de um grande monte de terra. Hasanudin fez igualmente embarcar a artilharia, as munições e todo o fato que mandara recolher das tendas do imperador, um riquíssimo tesouro que ele não queria deixar para saque dos seus homens e ainda menos dos inimigos, pois, como era costume dos poderosos sultões de Java, também Trenggana partira para aquela conquista com magnificente estado e faustosa recâmara.
Apesar das precauções tomadas para que o levantamento do cerco se fizesse com segredo, silêncio e rapidez, pressentiram os sitiados de Panarukan que os seus inimigos desmanchavam o arraial e se aprestavam para partir. O moço sultão em pessoa decidiu fazer uma surtida com os quatro capitães e os amoucos vitoriosos do combate anterior, para lhes dar uma última lição.
O assalto ao campo fez uma verdadeira razia nos homens desprevenidos, ocupados a carregar as carretas ou no transporte de arcas, almofreixes, trouxas e emborilhos para o embarque nos navios. Meia hora mais tarde, os amoucos, cansados de matar, retiraram-se para a cidade, com poucas baixas, permitindo o embarque dos inimigos em retirada. Nos destroços do arraial jaziam milhares de mortos, jaus e estrangeiros, nobres e gente baixa, sem distinção.
Embarcado no junco que levava o corpo de Trenggana, o ulema Sunan Kudus que o aconselhara a fazer a jihad aos gentios de Panarukan, a fim de os converter à Lei de Mafamede, contemplava com grande perturbação os navios da armada incendiados pelos panarucões. Allah, por estranhos desígnios que o seu fiel servo não entenderia até à hora da sua morte, concedera uma vitória retumbante aos idólatras e uma pesadíssima derrota aos seus crentes que os queriam converter.
Como se não bastasse a mortandade causada pela desastrosa jihad contra Panarukan, após o enterro de Trenggana em Demaa, a revolta e o desejo de vingança dos aliados de Patem Pandor, pela indigna morte que lhe tinham dado e a todos os seus parentes, assim como a luta pela conquista do poder de oito pretendentes do trono, puseram o reino a ferro e fogo.
Os soldados e marinheiros da armada que estava surta no porto, vendo-se sem rei e sem governo, começaram por assaltar e roubar os barcos de mercadorias, passando em seguida ao saque da cidade, não deixando casa por esventrar, matando infinda gente e cativando outra que levaram a vender em diversas partes; por fim, quando já nada restava para roubar, lançaram-lhe fogo, que a consumiu toda até aos alicerces, fugindo nos barcos da armada, sem que o seu almirante tivesse força para os impedir.
Desesperado com a situação do reino e sem mão nos motins, o sultão de Pasuruan, em concerto com Hasanudin e outros rajás seus aliados, embarcaram para Japara onde, em breve tempo, elegeram o Patem Sunan Prawata como Pangeran do reino de Demaa, com grande contentamento do povo, levando-o logo para a capital, com um pequeno exército, para castigar os culpados e pacificar o reino.
Durante estes sucessos, os portugueses sentiram-se um joguete da sorte ou de Hasanudin, que os levava consigo para onde quer que fosse, tanto aos sãos como aos enfermos. Durante os motins, mantiveram-se sempre a salvo no navio do sultão, fortemente defendido, não podendo por isso escusar-se a acompanhá-lo a Japara, nem a fazer a viagem triunfal de regresso a Demaa com o novo Pangeran.
Contudo, vendo que a paz tardava, por causa dos castigos de algumas centenas de saqueadores da cidade que não tinham logrado fugir e foram empalados ou queimados nos barcos onde os prenderam, os portugueses temeram que a violência e a revolta que continuava a grassar na terra não se limitasse às punições dos criminosos.
– Escapámos da primeira revolta, mas a nossa sorte pode mudar – observa Fernão, cansado de estar metido no barco, por não se atrever a andar na cidade.
– Se não partirmos já para Banten – acode Rui de Moura enfrenesiado –, perderemos esta monção e eu não quero passar aqui nem mais uma semana, muito menos outro Inverno!
– Hasanudin tem de nos deixar ir embora! Já cumprimos as nossas obrigações para com ele, à custa de grandes trabalhos, do nosso sangue e da morte de muitos companheiros.
– Tens razão! – concordou Fernão, acrescentando com a sábia prudência que os companheiros já lhe conheciam e quase sempre acatavam: – Todavia, devemos ter muitas cautelas com esse pedido, dar a el-rei boas razões para a nossa ida, fazer de modo que seja ele a mandar-nos embora livremente e satisfeito connosco. para que nos pague aquilo que nos prometeu.
Hasanudin não pôs entraves à partida dos seus portugueses, mostrando-se até muito satisfeito com a sua participação na guerra. Manteve a palavra – de príncipe bem inclinado e largo de condição, como Fernão contaria mais tarde – quitando-lhes os direitos às fazendas, pagando cem cruzados a cada um dos vivos e trezentos aos herdeiros dos catorze que tinham morrido no seu serviço.
Quinze dias depois, partiam de Banten para a China, com o barco cheio de pimenta, em conserva com outros quatro navios de portugueses igualmente carregados.
189 Expressão malaia que quer dizer estou morto, morro.
LIVRO VII
MAR DE ANDAM
PEGU-BRAMAA
Chegámos onde el-rei estava assentado em um muito grande catre, assim mesmo dourado, com muito grande soma de coxins grandes e pequenos todos lavrados e por eles muita pedraria e aljôfar. E chegados diante dele lhe fizemos nossa reverência segundo o costume da terra, que é com as mãos cruzadas sobre os peitos e a cabeça quão baixa possa ser. E el-rei por nos fazer grande honra se assentou na cama direito e se riu para nós; e então lhe amostrámos as armas .
Depois de tudo isto apresentado lhe mostrámos o cavalo que levávamos, que era arábio ruço pombo, em o qual el-rei mandou cavalgar e que o passeassem. E depois de bem passeado, el-rei ficou mui contente dele, porque era formoso e bem arrendado. Isto assim acabado, fomos todos tomados e levados por certos homens fidalgos que nos meteram em uma câmara que debaixo deste cadafalso estava e nos vestiram a cada um sua roupa de brocadilho, feitas à usança da terra, e também nos deram cada um sua touca.
E isto vestido sobre os nossos vestidos que levávamos e com uns cingidouros que nos deram, cingidos por cima, parecíamos bestas mal albardadas.
E assim nos tomaram a levar perante el-rei, o qual desde que nos viu com tão más disposições começou-se de rir, perguntando a esses fidalgos que lhes pareciam os portugueses vestidos à sua arte.
E eu, que não estava muito contente com tal zom
baria, fiz que não atentava nisso e olhei se podia ver alguma cousa do aparato d’el-rei; e contei os homens da guarda que estavam dentro .
(Autor anónimo)
I
Meias verdades são piores do que falsidades
(bengali)
Carta de Garcia de Sá a El-Rei D. Manueclass="underline"
O ano passado foi daqui por mandado do capitão-mor Francisco Lampreia e Jorge de Pina a Pegu por embaixadores, e depois partiu daqui António Correia na [nau] Brandoa para Malaca e de lá havia d’ir a Pegu, onde foi e se acharam lá todos, donde vieram desavindos e mal aviados com a gente da terra, e assi [com] guzarates que lá estavam com suas naus. Dizem ser terra muito rica e abastada de todalas riquezas, ouro, almíscar, beijoim, rubis, outras e muitas cousas ricas, aos quais se não quis consentir na terra que se vendesse nada porque têm já sabido se tratarem com nosco que logo serão destruídos, e por este respeito se mostraram pobres e tiranos e de pouco gasalhado, depois que receberam [os portugueses].