É gente de pouco poder, e muita, por que lhe parecia que fazendo o que faziam que lhe não tornássemos lá mais; faça V. Alteza bom fundamento desta terra e aproveite-se cedo dela, antes que se dane com nosco, e de fazer fundamento de pousar gente nela e grandes defesas ainda que já lá vão fustas de João Moreno.
Malaca, 1520
Pêro de Faria dera-lhe a embaixada ao Martavão, de novo como recompensa dos serviços que ele lhe prestara em muitas ocasiões, porque ali teria ocasião de fazer bons tratos e restaurar as suas finanças. Além de assentar pazes com el-rei, deveria também concertar com Sua Alteza fretes regulares de mantimentos para prover a fortaleza de Malaca e, ao mesmo tempo, tratar do seu próprio negócio e proveito.
De caminho, procuraria descobrir o paradeiro da armada de Lançarote Guerreiro – um fidalgo corsário que andava com uma força de cem homens a assaltar barcos mouros no golfo de Bengala – e rogar-lhe que acudisse a Malaca, ameaçada pelo rei de Achem.
– Vamos dar-te todas as informações sobre a terra e os tratados que fizemos com os seus reis, pois necessitamos de renovar os concertos de pazes, visto os seus reis nunca o serem por muito tempo e nem todas as mudanças nos favorecem. Devemos seguir o exemplo de António Correia que conseguiu o melhor dos tratados graças a um poema!
– Um poema português?
Pêro de Faria soltara uma risada.
– Nem mais! Um poema de Luís da Silveira, o conde de Sortelha. Foi cousa muito falada.
– Mas como puderam entendê-lo?
– Não houve mister trasladá-lo! Foi assi.
António Correia chegara a Martavão, a vinte e sete de Setembro do ano de mil quinhentos e dezanove, para concertar pazes com o rei de Pegu por ordem do governador Diogo Lopes de Sequeira, seu tio. Não fora apenas o parentesco a razão da escolha, o enviado destacava-se pelas suas qualidades de capitão e homem notável, capaz de levar a bom termo uma missão. Dera provas da sua prudência quando não se arriscara a ir mais além do porto de Martavão por serem aquelas costas ainda pouco conhecidas dos portugueses, assaz perigosas, devido às numerosas ilhas e ao grande macaréu que tinham os rios dos seus principais portos.
O reino de Pegu, de que faziam parte o porto e terras do Martavão, gozava de uma situação privilegiada, no golfo de Bengala, desde o cabo de Negrais até ao de Tavai, limitado pelos reinos de Arracão, a norte, e Sião a sul. Tinha muita terra plana e fértil graças aos rios Irauadi e Saluém que a recortavam toda, dando-lhe a forma de uma imensa horta regada, ideal para o cultivo de arroz, além da criação de búfalos e outro gado; nas suas florestas dava-se o lacre, caçavam-se os melhores elefantes de trabalho ou de guerra, as suas minas regurgitavam de prata e pedras preciosas, como os sanguíneos rubis.
– Se tudo correr bem, poderemos carregar a nau e os dois juncos com mantimentos de que Malaca está tão precisada – disse para os seus oficiais.
Era a principal razão da sua vinda. O rei de Bintão não desistia de reconquistar Malaca, de onde havia sido expulso por Afonso de Albuquerque; sediado em Pago, que fortificara e armara, mantinha a cidade cercada, por terra e por mar, não permitindo a entrada no porto de qualquer barco que levasse mantimentos ou mercadorias e mandava a sua gente armada fazer constantes assaltos à fortaleza dos portugueses. Quando, dois meses antes, António Correia lá chegara com a sua nau carregada de mantimentos, dera uma ajuda providencial aos sitiados que, famintos e doentes, não ousavam sair do forte para enfrentarem num corpo a corpo um inimigo muito mais numeroso e bem alimentado.
Durante esses dois meses não deixara os seus créditos em mãos alheias e estivera metido nas tranqueiras, fora da fortaleza, comandando os seus arcabuzeiros e besteiros, com algumas peças de artilharia, a conter os assaltos dos sitiadores, comendo e dormindo armado, sem repouso do corpo ou da alma, matando muitos dos assaltantes, sem sofrer perdas dos seus homens. Os inimigos, desencorajados pela sua feroz defesa, tinham afastado o arraial para mais longe e só de tempos a tempos se atreviam a fazer correrias em terra.
Vendo Malaca mais aliviada do perigo, Correia determinara que era tempo de cumprir a ordem do governador que o havia mandado a Pegu assinar o tratado de paz, cujo caminho já deveria estar preparado por Francisco Lampreia e Jorge de Pina, enviados fazia algum tempo a apalpar o terreno e a afastar empecilhos. Já houvera uma feitoria portuguesa no Martavão, mas, três anos antes, um tal Henrique de Leme apresara um barco de mercadorias pegu, provocando a ira dos moradores da cidade que, em retaliação, tinham incendiado a feitoria. Só a muito custo o feitor António Dinis e os restantes portugueses que estavam em terra lograram salvar a pele, fugindo para Malaca.
Correia fizera escala em Pacem para carregar pimenta, em troca dos panos de Cambaia que trouxera de Cochim, por ser essa especiaria a melhor mercadoria para os tratos de lacre e arroz no Martavão, como podia comprovar nesse preciso momento, já no porto, vendo a multidão de barcos que andavam ao frete e iam carregar à cidade de Pegu, que dera o nome ao reino, onde vivia o rei.
Os primeiros contactos com os pegus não foram muito auspiciosos, apesar de os pilotos locais terem acorrido em paraus a remos para rebocarem a nau, onde tinha deflagrado fogo, pelo impetuoso rio Saluém até à barra. Ali esperaram treze dias pela autorização do rei, trazida pelo mandarim Cemim Bolegão, para poderem desembarcar. Por aquelas bandas nada se fazia sem peitas ou odiaas – os presentes oferecidos não só ao rei como aos ministros, a oficiais e a quem quer que mexesse uma palha ao serviço do requerente –, a fim de amaciar vontades, afastar escolhos e acelerar os negócios.
Correia pagou de imediato grossas peitas ao toledão da barra, assim como ao seu filho e ao genro que tinham rebocado a nau; também ao Cemim Bolegão para a autorização de entrar no porto e, por fim, ao toledão ou governador do Martavão e aos xabandares190, seus genros, pelo uso de um gudão ou silo subterrâneo para armazenar as mercadorias, presenteando ainda outros oficiais e criados por vários pequenos serviços. E a procissão ainda ia no adro.
Sempre que desembarcavam para tratar dos negócios da embaixada ou da nau, os portugueses eram rodeados por alcovetos, muito bem trajados, pegadiços como moscas.
– Donde sois? Vindes para tratos de lacre ou de arroz? Quanto tempo ides quedar-vos por cá?
– Haveis mister de esposa que vos cuide, durante a vossa estadia. Vede quão formosas são as nossas mulheres.
Traziam-lhes moças de vários tamanhos, formas ou idades, que os saudavam com muitos sorrisos e meneios provocantes, saracoteando-se de modo a que os panos que lhes cobriam as vergonhas se abrissem na frente e permitissem vislumbrar os seus tesouros mais íntimos, fazendo gala em provocar desejo nos homens com uma descarada promessa de delícias.
Os alcoviteiros apresentavam-nas uma a uma, enunciando os predicados e dons das beldades, a fim de acrescentarem o interesse dos clientes que olhavam embasbacados para o magote de filhas de gente honrada que, com licença de seus pais, vinham oferecer-se seminuas, como vulgares mulheres de partido, para maridar com eles, durante uns dias ou meses, em troca de dinheiro, sem que por isso se sentissem desonradas.
– Fareis o contrato com os pais da moça que mais vos agradar, pelo tempo que aqui estiverdes, e ela vos servirá dia e noite como esposa no barco ou na vossa pousada em terra. Antes de partir, pagar-lhe-eis a quantia acordada.
– Uma esposa a prazo? E se eu quiser tê-la por mulher de novo na próxima viagem?
– Pedi-la-eis e ela vos será dada de novo pelo tempo da vossa estadia.
– E se já tiver casado?
– Virá do mesmo modo.
– E o marido não se anoja?
– Nem que seja o homem mais rico de Pegu, nada dirá. Devo advertir-vos que depois de feita a escolha, não deveis buscar outras mulheres, porque correreis risco de vida.