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– E se a moça for virgem? Algumas são bem mocinhas.

– Os pais e os futuros maridos, sobretudo entre a gente nobre, estão dispostos a pagar muito bem a um estrangeiro para que antes da noite de núpcias tire a virgindade à donzela, uma função que repugna aos pegus por ser cousa imunda.

Auspiciosa recepção que prometia um futuro risonho às relações entre gentios e portugueses, todavia comprometida pela traição do grumete Veloso que fugira da nau e, peitado pelos mercadores guzarates – que viam com muito maus olhos a intromissão naquele comércio dos seus maiores rivais e inimigos –, andava a instigar os moradores contra os portugueses. Lampreia e Pina que, embora desavindos, se tinham acolhido à nau para regressarem a Malaca, contaram as atoardas do desertor ouvidas aos pegus seus amigos.

– O filho da puta anda a espalhar na praça que nós não viemos cá para fazer tratos de paz, mas para os espiar. Diz que pretendemos apenas sondar a barra e conhecer a terra, para a nossa armada aí entrar e a conquistar.

– E o governador está a dar ouvidos ao cabrão traidor, porque o aposentou em casa de um filho seu.

– É voz corrente que o toledão nos vai expulsar ou até matar a todos, por espias, para não contarmos em Malaca o que aqui vimos.

O embaixador fervia em sanha. Para sanar o conflito e ganhar a confiança do governador teria de lhe pedir nova audiência, multiplicar os presentes para ele e para os principais mandarins de Martavão e de Pegu. Também teria de peitar o filho do toledão para deitar as mãos ao grumete que haveria de pagar na forca os crimes de deserção e traição, servindo como exemplo de justiça à tripulação. Por tudo isto, a missão iria custar-lhe os olhos da cara, se calhar nem o frete que levaria na torna viagem cobriria a despesa.

– A embaixada não pode correr mal – disse no conselho de oficiais reunido na nau, depois de ter comprado de novo o favor do toledão. – António Pessanha, confio-vos a missão de mensageiro para levardes as cartas a el-rei. Procurai, por vossa vida, cair nas boas graças de sua alteza, para podermos concertar esta paz que é tão necessária aos nossos em Malaca.

– Pelo que sei, esta gente não morre de amores por nós – respondeu o designado, acrescentando em zombaria: – Espero que não cortem a cabeça ao mensageiro.

– Estão agora mais inclinados a favorecerem-nos, pois sabem que lucrarão com os tratos para Malaca – sossegou-o o embaixador. – Convosco irá por escrivão Belchior Carvalho que redigiu esta minha carta e também um pequeno séquito para mais vos autorizar, porque esta gente é muito presunçosa e ama a pompa acima de tudo. Alugaremos um palanquim para vos levar.

– .Com grande prosápia, pois então! Pena é que me não vejam em Alenquer, de onde sou natural, para se morderem de inveja.

O palanquim onde iam refastelados o mensageiro e o escrivão era opulento, pintado de vermelho e ouro, levado em ombros por dez carregadores, seguido por uma comitiva de sete portugueses, além da gente do seu serviço, dos peões de terra para carregarem o fato e as provisões necessárias para a jornada de quarenta léguas pelo sertão.

Em outro palanquim seguia o Cemim Bolegão com o língua, escoltados por um corpo de guerreiros vestidos com couraças acolchoadas, feitas das carapaças duras de uns bichos desconhecidos, armados com lanças de pontas compridas e espadas de ferro morto, muito mais largas do que as portuguesas, metidas em bainhas de madeira; os capacetes e os paveses, da altura de um homem, eram feitos de couros de elefante envernizados.

O embaixador viu-os partir algo apreensivo, apesar das odiaas riquíssimas que mandava ao rei – em que sobressaíam uma tapeçaria de Veneza, pimenta no valor de alguns contos de réis, peças de brocado, drogas, essências e porcelanas da China –, ao toledão barja, que era uma espécie de primeiro-ministro, de cerca de metade da valia do presente real e, embora mais modestas, a outros mandarins influentes.

Pessanha tinha razão nos seus temores, pois a façanha de Henrique de Leme tinha despertado grande temor e os pegus não queriam consentir os feringhis191 nos seus portos. Contudo, se Malaca não podia dispensar a aliança com Pegu, que a provia de alimentos e de ajuda militar em caso de necessidade, o contrário também era verdadeiro, pois este reino tão pouco poderia prosperar sem os portugueses. Tanto os governadores da Índia como os capitães de Malaca estavam muito mais interessados na aliança com o reino de Pegu do que com o de Sião, que começava a ser engolido pelas nações vizinhas.

Os naturais da raça mon ou talaing eram gente fraca para pelejar, mais dada à sensualidade e aos prazeres da vida do que às agruras da guerra. Bons trabalhadores, meãos de corpos, com traços semelhantes aos chins, embora de cor mais baça, tinham os cabelos tosquiados em cercilhos à roda da cabeça como tigela emborcada, ao modo dos antigos clérigos, com os cabelos mais crescidos na moleira. Andavam descalços, cingiam-se com uns panos, como as mulheres, por baixo de umas cabaias curtas e traziam beatilhas nas cabeças com as pontas levantadas para cima como carochas de bispo. As mulheres eram mais brancas do que os homens, as mais nobres e regaladas sobressaíam pela formosura, vestidas com cabaias de linho e seda compridas e transparentes.

Embora não falassem a mesma língua, os pegus diziam que os siames descendiam da sua linhagem, o que não era de estranhar porque usavam do mesmo modo, metidos no instrumento da sua geração entre a carne e a pele, de um até cinco, ou mesmo nove, cascavéis do tamanho de ameixas alvares – os dos fidalgos de ouro ou prata, os da gente baixa de chumbo e fuzileira –, fazendo alegre som por onde quer que fossem, de maviosos tons de tiple, contralto e tenor, os preciosos, mais roufenhos e desafinados os de ouropel e fancaria, um uso que António Correia jamais vira a outro povo das Índias. Derivava este costume, segundo a lenda da sua criação, do ajuntamento de uma mulher com um cão, cuja prole povoara aquela terra que até então fora erma. A mulher e o perro haviam sido os únicos sobreviventes de um junco da China atirado por uma tormenta para aquelas costas e destruído; a mulher tivera então cópula com o cão e parira filhos que depois copularam com ela, gerando novos rebentos que se multiplicaram de contínuo, propagando-se depois pelas terras do Sião.

Os pegus usavam os guizos em memória do cão mítico e a razão das suas mulheres serem mais bem-parecidas do que os homens, segundo elas próprias diziam, devia-se às fêmeas terem saído à primeira mãe e os machos ao perro, o pai primordial. Em Malaca, António Correia preparara-se bem para a sua missão, informando-se dos costumes destes gentios com os malaios e judeus, que lhe tinham contado muitas histórias fantasiosas como a do coito da mulher com o bicho e outras mais credíveis como Pegu e Arracão terem sido povoados por degredados, cujas autoridades impuseram o uso de cascavéis como castigo pelo pecado da sodomia que cometiam.

Sabia igualmente que teria de vencer a desconfiança que os povos daquela região nutriam pelos portugueses, como certeiramente apontara António Pessanha, porque os seus reis já haviam sido vítimas dos ardis, sobretudo quando os feringhis conseguiram terras para nelas construírem as suas feitorias. Correia conhecia bem o modo como os capitães alevantados se tinham socorrido da história fabulosa da fundação de Cartago pela rainha Dido, ao pedirem um pedaço de terra do tamanho de uma pele, para nela se estabelecerem. Haviam-no feito em Pegu e Sião, de modo que por aquelas paragens quando se referiam aos cristãos diziam que pertenciam à aldeia da pele que se estende.

190 Capitães do porto ou oficiais responsáveis pelos visitantes estrangeiros de diferentes nações.

191 Franges, europeus, sobretudo portugueses.

II

Elefantes iguais podem enganar

(tâmil)

O estrangeiro recém-chegado disse:

– Nós gostaríamos de nos estabelecer aqui para fazer tratos.

Ao que o rei de Pegu respondeu:

– Eu tenho muitos inimigos. Os Shans atacam-nos constantemente. Se combaterdes ao nosso lado, para derrotar o inimigo, eu darei permissão para vos estabelecerdes aqui.