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[Quando os Shans atacaram Pegu, os portugueses rechaçaram-nos com as suas armas e artilharia, fazendo o inimigo bater em retirada].

Então, o capitão português fez um pedido a el-rei:

– Dai-nos apenas um pedaço de terra que uma pele de búfalo possa abarcar que com ela nos satisfaremos.

O rei de Pegu deu-lhes a pele e a permissão para tomarem o terreno que pediam. O capitão mandou cortar a pele em tiras finíssimas [e ligá-las umas às outras como uma corda], de modo a poder cercar um extenso território no Sirião.

– As casas que ficam no terreno circundado pela corda têm de ser desmanteladas e transferidas – ordenou aos moradores. – Este lugar pertence ao território que el-rei nos concedeu.

Os desalojados bradaram contra a expulsão:

– Os Portugueses prometeram tomar um terreno do tamanho de uma pele de búfalo, mas cortando-a em tiras finas tomaram muitas terras!

O rei de Pegu respondeu-lhes:

– Nós prometemos dar aos Portugueses um pedaço de terra medida pela pele de um búfalo. Eles procederam com sabedoria, não há nada a dizer da sua conduta. Estes homens ajudaram os nossos guerreiros a combater o inimigo e concertámos com eles uma paz duradoura. Deixemos que se estabeleçam. Assim se construiu nesse território uma cidade portuguesa.

(Da crónica bramaa Potugui Yazawin192)

António Correia fizera tudo para que o tratado fosse assinado e o seu esforço fora recompensado: el-rei acedera a concertar as pazes com os portugueses. Pessanha regressara, cheio de empáfia, transportado num castelo de elefante, trazendo consigo dois representantes reais, o rolim-mor, cabeça dos seus religiosos, e o Cemim Bolegão.

As reuniões com os delegados correram sem incidentes e em boa harmonia, os capítulos do acordo foram redigidos a contento de ambas as partes e o tratado ia ser finalmente assinado em cerimónia soleníssima no templo da cidade que se enchera de gente. Martavão estava em festa e, como os seus artífices eram muito bons construtores de paraus e juncos, fizeram-se grandes corridas no rio, com barcos a remos, todos pintados e enfeitados, para grande comprazimento dos portugueses.

– A cidade engalanou-se com toda a pompa – veio dizer-lhe o espia que Correia enviara ao templo, para não ser apanhado de surpresa por qualquer ardil de última hora. – As mulheres luzem os seus panos e jóias mais belos, o pagode reluz de ouro e pedraria, até os livros sagrados para fazerem os juramentos são dourados. O sacerdote já vos espera com o ministro.

O embaixador percebeu que os pegus esperavam deslumbrá-lo com o fausto e a riqueza da parafernália usada no ritual.

– Já tive ocasião de ver alguns desses livros nos templos e em casa do governador. São preciosos. Não temos nenhuma Bíblia nem missal com iluminuras que se lhes possa comparar – lamentou-se, vendo o simples breviário nas mãos do capelão da nau, que o iria acompanhar na função de rolim.

Os pegus escreviam da esquerda para a direita, como na Europa, gravando com estilete de ferro em folhas de palma e em placas de bambu finas como papel, chapeadas e envernizadas, com a superfície revestida de folha de ouro com iluminuras nas margens a vermelho e verde e letras a brilhante.

– Não posso fazer o juramento sobre esse livro, meu padre – decidiu numa voz que não admitia réplica –, porque haveria de parecer de pouca valia aos gentios, como se não nos importasse a nossa religião. Temos aí outra obra que servirá melhor a este propósito.

Desembarcaram com grande aparato, trajados com as suas melhores galas e exibindo espadas e punhais de cerimónia com os punhos dourados, os dos mais nobres, cravejados de pedras preciosas. Abriam o cortejo dois capitães que transportavam, à maneira de relicário, uma almofada de brocado dourado, onde repousava um grande livro coberto por um pano de veludo carmesim; a seguir ia o embaixador, de chapéu emplumado e vestido como para uma audiência com o Papa, ladeado pelo capelão, de sobrepeliz branca, com uma cruz de prata nas mãos; por último, formando uma lustrosa comitiva, os oficiais, os mercadores principais e um corpo de guardas armados.

No templo havia uma gigantesca estátua de Buda deitado, com um braço por cima do rosto. Diante dela, no chão, tinham estendido um espesso tapete onde fizeram sentar o embaixador com o padre, junto do rolim-mor e do Cemim Bolegão que já os esperavam. O ministro tirou de uma caixa de marfim a folha de ouro batido onde vinham escritas as capitulações, que um dos seus oficiais leu em voz alta, em língua mon, por duas vezes para ser entendido pela assistência, tendo António Correia dado a sua folha também de ouro escrita em português. Assinadas ambas pelo ministro e pelo embaixador, procedeu-se ao juramento, feito com muita reverência, ouvido pela assistência com tal acatamento e silêncio, que deixaram os portugueses pasmados com a sua devoção.

O rolim leu no magnífico livro, trabalhado a folha de ouro, a lenda da origem de Pegu que o língua trasladou do seguinte modo:

O reino de Pegu, na língua dos seus naturais, é Pachou, nome que nos tempos antigos tomou da sua principal cidade e significa Engano, por causa de um ardil a que recorreu um príncipe da Casta do Sol, a fim de vencer um desafio lançado por um rei inimigo que veio com uma grande armada conquistar o próspero Reino do Norte.

O invasor tinha desembarcado com um poderoso exército e avançava, conquistando e destruindo as povoações e as gentes que encontrava no seu caminho. O rei da Casta do Sol saiu ao seu encontro e travou com ele algumas batalhas que causaram grandes perdas em ambos os exércitos. Chegaram a um tal empacho que, cansado da mortandade, o rei estrangeiro mandou desafiar o de Pegu para um combate singular, fiado na sua corpulência de gigante e força colossal.

Aceitou o repto o filho do rei, que era um moço guerreiro de vinte anos, muito valente, experimentado nas armas, além de ter sido criado com dureza nos montes, avezado a matar com a sua espada tigres e outras alimárias ferozes.

O duelo teve lugar numa campina deserta, no sítio onde hoje é a cidade de Pegu, e o combate durou um grande espaço, com os dois adversários ferindo-se de parte a parte com muita braveza. O príncipe sentiu a fadiga do seu braço, enquanto a força do adversário não parecia diminuir e temeu pela sorte do seu reino. Como cada qual faz a guerra conforme pode, o príncipe bradou:

– Ah falso, que trazes gente contigo para te favorecer!

O rei estrangeiro, cuidando que os seus homens acudiam a socorrê-lo, virou o rosto para trás a fim de os impedir. O príncipe, que esperava por esse momento de distracção, desferiu-lhe uma violenta estocada na barriga, de que logo caiu morto. Valera no confronto mais o jeito do que a força e, com esta astuciosa vitória se acabou a guerra. Em memória daquela batalha e da indústria e valentia do seu filho, el-rei fez erguer na campina uma muito formosa cidade, com o nome de Pachou ou Engano.

Acabada a leitura, o rolim queimou uns papéis amarelos perfumados, com inscrições, sobre cujas cinzas o ministro pôs as mãos, dizendo:

– Em nome d’el-rei juro que tudo o que aqui foi assentado é firme e valioso.

Chegara a vez de o embaixador do reino de Portugal prestar o seu. O capelão tomou o livro da almofada e levou-o para junto do Rolim, abrindo-o à sorte para António Correia ler. Era a única obra de folha de papel inteira que tinham na nau, um cancioneiro de trovas de fidalgos e pessoas principais que Garcia de Resende, o escrivão da puridade d’el-rei D. João II, tinha mandado imprimir e servia nas viagens para desenfadamento da tripulação, sendo lido aos serões ou por ocasião de alguma festa, pelo capelão ou por quem o soubesse fazer.

Como aquele povo só guardava juramento enquanto lhe convinha o negócio, depois da leitura que o rolim fizera da lenda como se fora um texto sagrado, o Cancioneiro Geral até vinha a propósito. O embaixador pôs os olhos na página aberta e começou a ler a trova de Luís da Silveira, o conde de Sortelha: