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Vaidade das vaidades

e tudo é vaidade,

assi passam as vontades

com’às cousas da vontade.

Tudo se já desejou

e tudo s’avorreceu

e tudo se já ganhou

e tudo se já perdeu.

E o homem que mais tem

do trabalho a que se dá?

a geração vai e vem,

a terra sempr’assi está.

As cousas naquesta vida

todas s’entregam per conto,

que se cá dê mor medida,

tudo lá tem seu desconto.

O poeta glosava a sentença de Salomão, no Eclesiastes, Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade, contudo, à medida que ia lendo as palavras da trova, o embaixador sentia um arrepio de medo supersticioso a trespassar-lhe o corpo. Não fora talvez por acaso que o livro se abrira naquela precisa página, pois o poema soava-lhe aos ouvidos como um aviso ou uma censura por estar a fazer uma farsa daquele juramento. Esforçou-se para que a voz não tremesse, prosseguindo com a leitura:

O sisudo e o sandeu

tudo vi que tinha fim,

e disse então entre mim:

– Que me presta o saber meu?

Ignorantes e prudentes

todos têm ūa medida,

na morte nem nesta vida

não nos vejo diferentes.

Assi que neste presente

bons nem maus não se conhecem

e a todos igualmente

bens e males acontecem.

Daqui nacem confusões,

nacem descontentamentos,

perdensas, opiniões,

abaixam-se os pensamentos.

Um suor frio corria da testa de António Correia, parecendo-lhe estas palavras tão poderosas como se estivesse a jurar sobre as da Bíblia. Leu a última estrofe, com uma voz a ressumar de emoção que não logrou conter, enquanto prometia a si próprio, a fim de apaziguar o bater assustado do coração, que cumpriria o seu juramento com custo da sua vida, porque não podia invocar a Deus com falsidade e enganos, mesmo em negócios com gentios de outra fé:

O justo, o sabedor

e o mais cheio de fé

nenhum não sabe se é

dino d’ódio se d’amor.

Quantos isto faz perder,

porqu’a quem a fé não dura

encomenda-s’à ventura

e deixa de merecer.

Palavras proféticas, as do poeta, decerto inspiradas por esse sopro divino que dizem ser o alento dos vates. O silêncio que se fizera no templo era quase religioso, talvez devido à emoção com que lera os versos e que encontrara eco no coração dos pegus. No coração de alguns mouros mercadores que estavam presentes ao acto do juramento, a paixão era outra, de puro ódio, por medo de perderem os grandes lucros que tinham com os tratos das suas fazendas se os portugueses começassem a vir a Pegu. E logo juraram fazer quebrar as pazes assinadas pelos seus inimigos.

Enquanto António Correia carregava os dois juncos com mantimentos para Malaca e a sua nau com outras mercadorias para levar a Ormuz, a gente principal de Martavão convidava diariamente os portugueses para banquetes que ofereciam em sua honra, com o que todos folgavam. O piloto e o mestre da nau eram os que mais vezes iam a terra, para se proverem do necessário ao conserto das velas e afins, comendo sempre em casa de um abastado comerciante com quem tinham travado amizade.

Os mouros que os espiavam, ao saberem disso, usaram de muita indústria para aliciar um criado do dito mercador, a quem pagaram grossas peitas para que, nas vésperas da partida dos portugueses, quando os hóspedes do amo fossem lá cear, como fora aprazado, lhes pusesse peçonha na comida.

A traição foi levada a cabo com êxito, o piloto e o mestre morreram em poucas horas, depois de terem ingerido a comida que o moço lhes adubara com um forte veneno. Correia ficara consternado com as mortes, sentindo no entanto algum alívio quando soube que o crime fora a mando dos guzarates e não dos pegus, porque o senhor na casa onde os oficiais tinham comido deu tormentos aos criados que confessaram a traição. Sem o seu piloto, experimentado na derrota para Ormuz, seria o mesmo que navegar às cegas, por isso o capitão decidiu seguir para Malaca com pilotos da terra que costumavam fazer a viagem.

Apesar de todas as contrariedades e dos altíssimos gastos em peitas e odiaas, o embaixador estava satisfeito por poder assegurar ao governador Diogo Lopes de Sequeira, seu tio, que tinha cumprido a missão, selando em folhas de ouro um acordo de paz e comércio entre os reinos de Pegu e Portugal, que haveria de perdurar por muitos anos.

192 Adaptado de uma tradução de Maria Ana Marques Guedes O estabelecimento português no Sirião segundo uma crónica birmane, revista Oceanos, n.º 32, 1997.

III

Comer em casa do judeu e do gentio, mas dormir em casa do português

(oriental)

Carta de D. João de Castro a El-Rei D. João III:

Os capitães das fortalezas, oficiais, lascarins e toda a mais gente da Índia vivem tão mal e têm cobrado tamanha soltura em vícios, desobediência e toda a maneira de serviço de Deus e de V. A. que é cousa de muito recear e temer de vir parar em algum grande desacatamento e motim; [de] tudo isto a meu ver é causa a maneira de vossa justiça, porque se há parte no mundo onde se haja mister ser bem rigoroso e de improviso é na Índia. E, sendo assim, é ela cá tão larga, fraca e espaçosa que nenhuma pessoa tem medo de pecar por causa das muitas colheitas e esperanças que tem nas delongas dos processos, rogos de religiosos e necessidades que sempre há de gente e armadas.

Como quer que um homem mata outro, ou é alevantado ou faz outras cousas desta qualidade, vem dizendo que tem ordens, ou que é frade e fez profissão em Castela, e as testemunhas que dão a má prova umas dizem que estão na tórrida zona e outras debaixo dos pólos [e] cedo alegarão que fizeram profissão na Rússia ou em terra dos Georgianos; de maneira que, para se acabarem de fazer as diligências, primeiro dará uma volta a oitava esfera; e com isto e outros processos longos e infinitos se não pode cá fazer nenhuma justiça dos culpados, e vêm a fugirem os presos das cadeias ou a morrerem de velhice de sua morte natural; do que segue viver cada um a seu prazer, sem ter medo nem acatamento da justiça.

Ano de mil quinhentos e quarenta e sete

Bem instruído e documentado sobre o Martavão e o seu rival Pegu, Fernão Mendes Pinto embarcara no junco de um chim muçulmano, residente em Malaca, que tinha grandes negócios com os mercadores malaios e tâmiles. Tinham percorrido toda a costa sem maus encontros, embora com algumas aventuras inesperadas: a descoberta de centenas de corpos de guerreiros mortos, de mãos atadas, numa ilha onde tinham ido fazer aguada, decerto usada como lugar de suplício de criminosos e corsários; o encontro com três portugueses num batel à deriva, vítimas de um assalto; e o socorro prestado a um rei cristão daquelas ilhas para retomar o reino usurpado. Só não tinham topado rasto da armada de Lançarote.

Não contara encontrar o Martavão em guerra, todavia, à entrada no porto, os estrondos da artilharia soaram-lhe como um mau agouro e os seus receios não tardaram a confirmar-se. O rei Chaubainhaa estava confinado com a família e as suas gentes mais leais dentro das muralhas da cidade, cercada pelo poderoso exército de cento e trinta mil homens do rei de Bramaa193, conquistador de Pegu e dos feudos ou reinos vizinhos.

Assim, a má fortuna persistia em persegui-lo, pois não só chegara em pleno cerco, como se achava no lado do invasor, portanto, a sua missão estava irremediavelmente comprometida. Achou prudente regressar nessa mesma noite a Malaca, depois de entregar as cartas que trazia para João Caeiro, o amigo de Pêro de Faria.

Foi encontrá-lo nas tranqueiras, em frente da cidade, como capitão-mor dos setecentos portugueses arcabuzeiros e bombardeiros ao serviço do tirano Tabinshwethi. Outrora feitor em Pegu, seguindo uma prática corrente entre os capitães das fortalezas e demais oficiais ao serviço da Coroa, João Caeiro empreendera à sua conta muitos tratos de mercadorias, cujos lucros o tinham feito tão rico que até emprestava dinheiro ao Estado da Índia. Antes da guerra, tivera o cargo de chefe do povoado dos portugueses residentes no Martavão, onde vivia com uma formosa escrava gentia de quem tinha dois filhos.