– Ficareis mais seguros aqui connosco – aconselhara-o –, do que no mar onde sereis, no mais certo, tomados pelo inimigo.
Com ele estava Lançarote Guerreiro, o cavaleiro fidalgo da casa d’el-rei, que exercera o cargo de almoxarife de Cochim até ao dia em que achara mais proveitoso passar a alevantado, abandonando o serviço da Coroa para andar no corso às presas, primeiro junto ao mar Roxo, depois no golfo de Bengala, cujos saques o haviam enriquecido e aos seus homens. Embora corsário, tinha como ponto de honra respeitar sempre os cartazes de salvo-conduto passados pelas autoridades portuguesas aos mercadores gentios e só atacava os inimigos muçulmanos, fazendo verdadeira razia nos navios turcos, achens e malabares. A sua armada estava sediada em Tenassarim, sob a protecção do rei de Mergui, a quem pagava grandes tributos sobre as presas.
– Um capitão solteiro e mancebo não tem resguardo aos males que faz, porque na Índia se purgam com mui poucas orações – comentara Pêro de Faria, como a desculpá-lo, quando pedira a Fernão que o fosse procurar e lhe contara a sua história. – Esta terra acaba sempre por agasalhar e favorecer os homens solteiros e mancebos como ele. e como tu!
Com razão o dissera, pois com Lançarote estavam os outros capitães alevantados ou desertores a quem o capitão de Malaca escrevera cartas para que o fossem socorrer: António Gomes, Pêro Ferreira, Cosme Bernardes, Gonçalo Falcão, Gonçalo Vaz Coutinho e Diogo Soares. Filhos segundogénitos de famílias nobres que buscavam honra e proveito, por meio das armas, nas conquistas do Oriente, mais difíceis de obter ao serviço do Estado da Índia do que no corso ou nas armadas dos reis gentios e mesmo muçulmanos, que lhes apreciavam a valentia e a lealdade. Méritos atestados pelo provérbio mouro que corria por esses reinos: Comer em casa do judeu e do gentio, mas dormir em casa do português, seguros de não serem atraiçoados e assassinados durante o sono.
Fernão entregara-lhes as cartas de Faria, sublinhara a necessidade de ajuda a Malaca pelo perigo em que se achava, sujeita a ser acometida de um lado pelo rei de Bintão e do outro pela armada de cento e trinta navios do sultão de Achem.
– A armada dos achens já não oferece perigo – dissera Gonçalo Coutinho –, pois foi desbaratada em Tenassarim e tão depressa não fará mal seja a quem for.
João Caeiro acrescentara, depois de ouvir os outros capitães:
– Embora estejamos sempre prontos para servir el-rei, nosso senhor, como o pior perigo passou, não há mister ir agora a Malaca, arriscando-nos a desaprazer a Tabinshwethi que nos paga este serviço.
– Rogo-vos, então, que me passeis um instrumento de tudo o que me dizeis, para me darem crédito em Malaca de que levei a cabo a minha missão – pedira-lhe Fernão que pretendia ir-se embora logo que surgisse ocasião.
Passados quarenta dias ainda permanece no arraial, cansado de ouvir as histórias dos sete meses de cerco, das vidas e façanhas dos sitiadores. O rei de Bramaa assaltara a cidade por cinco vezes, sem lograr conquistá-la, porque a artilharia dos alevantados portugueses, embora superior a tudo o que até então se vira naqueles reinos, era fraca, quase inútil contra as altas muralhas e anteparas. Da banda de terra, a cidade estava rodeada por uma funda cava, cheia de água e de estrepes, que dificultava os assaltos; do lado do mar era defendida por sete navios portugueses, bem armados com cem homens sob o comando de Paulo Seixas, um aventureiro leal ao senhor de Martavão.
Os sitiados tinham repelido todos os ataques, causando grandes perdas aos assaltantes, embora tudo faltasse dentro das muralhas, desde alimentos ou munições aos próprios defensores, que eram menos de cinco mil homens, porque já muitos tinham desertado ou morrido do ferro e da fome.
Era pela fome e pela traição que Tabinshwethi os queria render, cortando-lhes o acesso aos mantimentos, peitando os seus comandantes e ministros com ouro ou promessas de feudos e cargos, sendo prática corrente entre os sawbwas ou governantes das cidades e reinos daquela região, na sua contínua luta pelo poder, vir o ganho pessoal sempre primeiro do que a lealdade ao seu rei ou à própria família. Exemplo disso era o governador da cidade vizinha de Moulmein, cunhado de Chaubainhaa e, tal como ele, da mesma raça dos mons de Pegu, que o rei de Bramaa aliciara para o seu partido, prometendo fazê-lo senhor de Martavão, se ele não prestasse auxílio à cidade.
Fernão está contente por se achar do lado dos vencedores, embora sinta pena dos sitiados e do seu rei, com quem viera fazer aliança em nome do capitão de Malaca. Por estranha coincidência ou talvez por sentir algum remorso da traição, lembra-se do embaixador António Correia que, um quarto de século antes, ali assinara um tratado de paz com o rei de Pegu, que era também senhor do Martavão. Um trabalhoso acordo conseguido graças à sua diplomacia que soubera aplainar as dificuldades e sanar diferenças, conforme lhe contara Pêro de Faria, quando preparava a sua missão. A perder tempo não se ganha dinheiro, pensa, lamentando que esta sua viagem tenha redundado em fracasso, mas não pode partir agora que o porto está debaixo do fogo dos navios de Seixas.
O cerco arrasta-se sem fim à vista e os comandantes dos bramaas, dos talaings, dos shans, dos mons e das demais raças que formam o exército dos sitiantes vêem-se metidos em grandes atribulações com as deserções dos soldados e marinheiros. Por medo, cansaço ou saudades da terra e da família, ao menor alvoroço no arraial, não só alguns mas todos os soldados de uma hoste ou mesmo da companhia tomavam o seu fato e, pés para que vos quero, desapareciam do arraial, deixando os seus oficiais a contas com a fúria d’el-rei.
O tungoo Tabinshwethi não era senhor de deixar os culpados sem punição, responsabilizando os chefes pelos erros ou covardia dos seus homens. Para manter a disciplina ordenava castigos tão atrozes à menor falta que, por fim, tanto os oficiais como os soldados bisonhos preferiam arriscar a morte em combate a sofrer a sua ira. Os castigos para qualquer fuga, deserção ou traição estendiam-se também a toda a família do faltoso que, na sua terra, era encerrada numa cabana de madeira e queimada viva. Kyoahteng Noarahtâ, o comandante-mor e seu cunhado, nomeado pelo honroso título de Bayin-naung, secundava-o, porque a sua grande experiência de guerreiro lhe ensinara que, mesmo quando é grande a diferença de número entre os adversários, mais do que o número conta o espírito numa batalha.
Perdido por cem, perdido por mil!, resigna-se Fernão como sempre que se defronta com situações ou acontecimentos cuja solução não depende da sua vontade. Pouco há a fazer no cerco e, como os capitães da armada de Lançarote Guerreiro o recebem com muita amizade, por lhes ter levado as cartas de Pêro de Faria, aproveita para conhecer as histórias das suas vidas, que eram todas de espantar. Forneciam-lhe um manancial de informações sobre muitos povos e terras daquele vasto mundo, onde poderia fazer lucrativos tratos, sem ter de pagar o quinto à Coroa portuguesa, porque esses lugares, devido à distância a que se achavam, estavam fora da alçada do governador e dos capitães de Goa ou de Malaca.
Fora sempre assim, desde a governação de Lopo Soares de Albergaria, o sucessor de Afonso de Albuquerque, que permitira a grande soltura da classe nobre, já de si indisciplinada, arrogante e pouco inclinada a acatar ordens, que viera para a Índia em busca de honra nos feitos militares e de proveito nos postos das capitanias, quer de terra quer de mar. Sendo os cargos escassos e a gente muita, quando a recompensa oficial tardava ou não havia vaga, até fidalgos da estirpe de Lançarote acabavam por desertar com as suas naus ou juncos para andarem ao salto das embarcações de mouros e gentios, longe das derrotas da carreira da Índia e da vigilância da Coroa.
Das histórias destes aventureiros corsários, nenhuma levava a palma à de Gonçalo Vaz Coutinho, homem fidalgo que gozava entre os seus da fama de guerreiro destemido e esforçado. O próprio a contara uma noite, na sua nau, quando se juntaram para cear e desenfadar-se com umas canadas de vinho, que nunca faltava nas martabanas, os grandes potes de cerâmica do Martavão que serviam de barris para transporte de líquidos e outras mercadorias.