– Prenderam-me no tronco de Goa por um caso de que não vale a pena falar – começou, rindo-se dos protestos dos companheiros. – Ali se achavam outros mancebos de sangue na guelra, como eu, acusados de grandes crimes.
Como era um desperdício que gente valente como aquela estivesse ali sem fazer nada, em vez de andar à caça de presas nestes mares infestados de barcos mouros, dei-lhes conta das minhas razões, confiando-lhes que tinha um plano de fuga para todos os que quisessem acompanhar-me. Nenhum quis ficar para trás.
– Contai comigo! Tudo é preferível ao baraço e ao cutelo. Não é certo que o governador nos conceda o perdão.
– Tão pouco quero ser degredado para o reino, mais pobre do que de lá saí e carregado de ferros, para grande vergonha da minha família.
– O tronqueiro, embora cafre, é honrado, não recebe peitas – disse o preso mais antigo, conhecedor das manhas do tronco –, já o tentei com ouro, sem efeito. Tem grande vigilância sobre o escravo jau que nos aferrolha e deita as correntes. Que podemos fazer?
– Por ora nada – sosseguei-os –, mais tarde iremos precisar de ajuda, no exterior, de homens valentes, amigos ou parentes, com quem possamos contar.
– Descansai, que desses não haverá míngua.
– Então deixai o negócio por minha conta.
Eu tinha uma escrava moça, muito formosa e mandei-lhe recado para que viesse todos os dias trazer-me a comida ao tronco e cuidar do que houvesse mister para me dar algum conforto. Como eu esperava, o jau não tirava os olhos dela, a babar-se de desejo. Animei-a a corresponder-lhe, dizendo-lhe que a nossa salvação dependia dela e daqueles amores, prometendo-lhe alforria se fosse bem sucedida.
O jau era bem apessoado e a cachopa dedicou-se de alma e coração à tarefa de o seduzir, não tardando o moço a quedar doido por ela. Quando o teve bem fisgado, depois de dormir algumas vezes com ele, pediu-lhe que me soltasse e aos outros presos, que eu os levaria também para onde fossem livres e ela seria sua para sempre. O escravo ficou tão assustado que a moça julgou o negócio perdido, porém ele apenas tinha dúvidas se eu cumpriria a palavra e o levaria também na fuga.
Quando nessa noite nos veio prender as correntes, fiz-lhe os mais solenes juramentos de que tudo o que a sua amada lhe dissera era pura verdade. Ficou mais sossegado e disposto a fazer o que lhe pedíamos, pelo grande amor que tinha à moça, para ele o melhor prémio da arriscada empresa. Começou então a passar as chaves das portas, uma a uma, a um amigo meu, que as mandava moldar e as devolvia com as cópias, tudo feito com tanto aviso e tão depressa que o tronqueiro não desconfiou da tramóia. Enquanto se faziam as chaves, os nossos amigos de Goa compraram uma grande manchua e deixaram-na fora de água, na ribeira do Mandouim, coberta de palha, com os remos metidos na terra por baixo dela, por dissimulação.
Em todo aquele tempo o jau manteve-nos nas correntes, porque todas as noites vinha com ele um filho do tronqueiro inspeccionar à luz da candeia os ferros de todos os presos. O dia acordado para a fuga foi um domingo de manhã, em que o tronqueiro ia à missa e, em seguida, a um leilão. O moço escravo preparou a diversão, tirando as lanças e chuços que estavam nos cabides, cheios de bolor, mandando os escravos negros limparem-nos fora de casa.
Vendo toda a criadagem ocupada, entrou nos cárceres e com as chaves novas abriu todas as portas aos presos. Avisados da fuga, dias antes, andavam os nossos amigos pela fortaleza e também junto da porta da cidade que ia dar à ribeira, onde já nos esperavam os negros remadores. E nós saímos todos mansamente dos cárceres, tomando as lanças e os chuços que os negros do tronqueiro limpavam no pátio.
– Filhos! – bradei-lhes. – Vinde connosco para terra firme e sereis livres.
Os negros deram saltos de alegria e juntaram-se ao nosso grupo. Seguimos por entre o muro e a barbacã, sem dar nas vistas, até chegarmos à porta da Ribeira, onde nos ouviu um dos filhos do tronqueiro que deu o alarme, ajudado pela mãe e pelas irmãs, a soltarem brados de Aqui d’el-rei! Acudam que fogem os presos da cadeia!
Acudiram os soldados do capitão, com espadas e lanças para nos deterem, logo contrariados pelos nossos amigos e parentes que terçaram armas com eles. Repicaram os sinos, dando o alarme que fez acorrer o capitão da fortaleza, Dom João de Eça, com uma lança nas mãos, à porta que dava para o cais, onde já se travava uma grande briga em que andavam metidos muitos amigos nossos com lanças, a fingir que nos iam prender, para nos ajudarem a fugir.
– A que d’el-rei! A que d’el-rei! – bradava o tronqueiro, vindo do mercado a correr para o cais.
Era tanta a revolta, os repiques e as gentes, que o capitão da fortaleza se atrapalhou com a lança, caindo do cavalo e o governador, D. Estêvão da Gama, cuidando que os mouros atacavam a cidade, veio com grande pressa ao cais com a sua gente.
Chegou demasiado tarde, porque já tínhamos embarcado na manchua e remávamos o mais rijamente que podíamos. Como éramos muitos, os que não tinham ferros seguiam a nado ou à toa do barco, agarrados aos cabos. Salvámo-nos todos e nenhum foi preso de novo.
– E a moça e o jau?
– Sim, que foi feito deles? – pergunta Fernão a rir, pouco crente em amores de gentias.
– O prometido é devido! – responde o homiziado. – Dei alforria à moça e eles juntaram os trapinhos, com a minha bênção. Se não fossem eles, talvez não estivesse aqui hoje a contar-vos esta história.
193 Mran-Mâ, uma província do sudeste da Birmânia.
IV
Não se deve mergulhar a perna antes de conhecer a profundidade
(tâmil)
Carta d’el-rei do Martavão aos portugueses:
Esforçado e leal capitão dos Portugueses, por mercê do grande Rei do cabo do mundo, leão forte e de bramido espantoso, eu, o mal afortunado Cō Bañâ, príncipe que fui e já não sou desta cativa cidade, te faço saber por palavras ditas da minha boca na firmeza fiel de minha verdade, que eu me rendo desta hora para sempre por vassalo e súbdito do grande Rei Português, senhor soberano de meus filhos e meu, com reconhecença de páreas, e de tributo rico qual ordenar a sua vontade, pelo que te requeiro da sua parte que tanto que Paulo de Seixas te der esta minha carta, sem fazeres nenhuma detença, te venhas logo com essas naus por junto do baluarte do cais da Varela, onde me acharás em pé esperando por ti para logo sem outro conselho me entregar em tua verdade com todo o tesouro que tenho comigo de pedraria e ouro, e da metade dele faço livremente serviço a el Rei de Portugal, com tanto que me conceda licença que à custa do que me fica, faça no seu reino ou nas fortalezas da Índia dous mil Portugueses a que prometo dar grossos soldos, para com eles me restituir no que agora me é forçado largar, por minha grande desaventura.
E quanto a ti e aos mais que estão contigo, que forem em ajuda de me eu salvar, prometo na fé da minha verdade, de partir tão largamente com todos que se hajam por muito satisfeitos.
(Peregrinação, capítulo CXLVIII-CL)
Chaubainhaa ia finalmente render-se e todo o arraial dos bramaas estava em alvoroço para assistir à sua entrega. O senhor do Martavão por três vezes tentara negociar a rendição e salvar-se com a família e o seu tesouro, em troca de um resgate de muito ouro, mas Tabinshwethi não aceitara as suas condições. Desesperado, enviara ao arraial dos portugueses uma carta com um pedido de socorro pela mão de Paulo de Seixas, que o servia com grande lealdade. Fernão achava-se na tenda de Caeiro quando o emissário chegara muito em segredo, vestido como um homem de Pegu, para não ser caçado pelos bramaas. O capitão lera a missiva e mandara logo chamar a conselho, com grandes avisos de discrição, a gente de melhor nome que tinha em sua companhia.