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– Não há mister dizer-vos quão proveitoso é este negócio para o serviço de Deus e d’el-rei, nosso senhor – concluíra, depois de lhes dar conta do conteúdo da carta.

– O tesouro de Chaubainhaa é tão grande como o pintam?

– E as suas promessas são verdadeiras ou só as faz para se livrar deste apuro?

A desconfiança dos portugueses na palavra dos governantes daqueles reinos fundava-se na experiência de ver como repetidamente os maiores aliados se atraiçoavam e mudavam de campo, sempre de olho no lado vencedor, não respeitando sequer os laços de parentesco de pais, filhos ou irmãos, desde que pudessem ganhar algo com a traição. Não era verdade o anexim de que almocreve cavaleiro não ganha dinheiro: lucros e proveitos faziam parte da linguagem comum a mercadores e homens de armas portugueses, sendo quase impossível destrinçá-los na Índia, porque ora andavam a defender as fortalezas e a fazer patrulhas no mar, ora se achavam a tratar de mercadorias nos portos dos vários reinos.

– El-rei é leal e sempre honrou os seus compromissos – respondera Paulo de Seixas, que prestara juramento para que todos vissem que falava verdade. – Quanto à sua riqueza, eu vi com estes meus olhos os vinte e seis caixotes do tesouro do anterior rei de Pegu, assim como uma casa cheia até ao tecto de barras e pães de ouro, com as quais se encherão várias naus grandes.

Tamanha riqueza ateara a cobiça de muitos e parecera a alguns uma dessas fábulas ou lendas a que os naturais daqueles reinos eram muito afeitos. Quando os ânimos serenaram, atendendo à magnitude do negócio, João Caeiro mandara sair o emissário, a fim de discutirem à puridade e darem o seu conselho.

Fernão, que ficara na tenda a pedido do capitão, embora afastado e sem participar na discussão, não duvidava de que tudo fariam para salvar Chaubainhaa, com a sua família e o tesouro, cujo prémio seria uma dádiva dos céus para os cofres da Fazenda Real sempre tão exauridos que nem dinheiro havia para pagar os soldos aos homens que serviam nas fortalezas e nas armadas do Estado da Índia.

Esquecera-se o bom Fernão da natureza e índole dos portugueses de que tantas vezes se queixava, por serem invejosos, preferindo danar um negócio necessário ao bem comum, a verem alguém lucrar ou ganhar fama com ele. De onde estava podia ouvir as falas de um grupo de seis homens que pareciam ter muito má vontade ao capitão e se aproveitavam da agitação geral para concertarem entre si a oposição:

– Se este negócio lhe correr bem, como tudo indica, o João Caeiro fica com a fama e o proveito que deveriam ser de todos nós!

– Quedará com tamanho nome e honra, que el-rei o há-de fazer marquês ou pelo menos governador da Índia e, a nós, nada.

O mais velho, que parecia ser o chefe daqueles ministros do demónio, alçou a voz para se fazer ouvir de toda a junta:

– Se correr mal, como também pode suceder, e Tabinshwethi descobrir a nossa traição, perderemos todos os nossos bens e também as cabeças porque ele as mandará cortar sem piedade. Não contem comigo para isso.

O capitão tentara falar, porém logo outro do bando o ameaçara:

– Se insistirdes nesta traição ao rei de Bramaa, nós lha denunciaremos, para não pagarmos pelas vossas culpas.

O medo calara as vozes a favor da ajuda aos sitiados e Caeiro fora forçado a escrever uma resposta ao senhor do Martavão, dando-lhe umas fracas desculpas por não lhe poder acudir. Paulo de Seixas regressara à cidade com a carta, muito indignado e entristecido com o resultado da sua demanda junto dos compatriotas.

– Ah, portugueses, portugueses! – lamentara-se Chaubainhaa com grande paixão, quando ele lhe entregou a missiva. – Quão mal pagastes ao desaventurado de mim o muito que por vós fiz tantas vezes, parecendo-me que assi fazia tesouro da vossa amizade, para que como leais me valêsseis numa tamanha necessidade como esta em que me vejo. Eu não queria mais que vida para meus filhos, enriquecer o vosso rei e ter-vos comigo em minha terra, de que vós todos houvéreis de ser principais.

Despedira-se de Paulo Seixas, dando-lhe como recompensa as jóias que trazia e mandando embarcar na capitânia a esposa talaing e os dois filhos do capitão, que esperavam por ele junto da família real. Seixas continuou, todavia, com a sua frota a defender a cidade que, assim protegida, não podia ser entrada.

Um comandante talaing, natural da cidade de Pegu, mais conhecedor das batalhas marítimas do que Tabinshwethi, subiu o rio e fez inúmeras jangadas de bambu de duas espécies: umas com torres de madeira, montadas sobre cadafalsos, mais altas do que as muralhas da cidade, cheias de soldados, e outras carregadas de palha e madeiros a que lançou fogo e, aproveitando a corrente, fez deslizar rio abaixo com chamas altíssimas para embaterem nos navios e abrasá-los.

Seixas não tinha suficientes batéis nem homens para irem desviar as jangadas de fogo, por isso deu sinal de retirada e a capitânia com os dois navios mais afastados de terra procuraram a salvação na fuga para o alto mar, escapando incólumes, enquanto os quatro juncos restantes eram consumidos pelo fogo ou tomados pelos soldados das jangadas das torres que já podiam chegar às muralhas, permitindo o assalto dos bramaas à cidade.

Abandonado à sua sorte pela maioria das suas gentes, o senhor de Martavão hasteara uma bandeira branca no baluarte da muralha e enviara uma carta ao invasor que lhe respondera com juramentos de lhe dar um estado para governar com muitas terras e rendas.

Tabinshwethi rejubilava com a queda do último reduto do reino de Pegu, que ainda estava fora do seu jugo, conseguida após sete meses de grandes trabalhos e pesadas perdas, esperando saciar a sua vingança nos vencidos. Trouxera para junto das muralhas a sua estância de oitenta e seis magníficas tendas de campo, o arraial soara com o estrépito das hostes de elefantes de guerra e do alardo dos milhares de cavaleiros, gente a pé e estrangeiros, todos com seus capitães, segundo a ordem das suas capitanias. Bayin-naung, o mestre de campo, dispôs o corpo dos setecentos portugueses diante da porta da cidade por onde iria sair Chaubainhaa.

Os olhos perdem-se num mar de gente, sem horizonte à vista, colorido pelo arco-íris das bandeiras, guiões, gualdrapas e cobertas dos elefantes e cavalos, com miríades de cintilações de prata e ouro arrancadas aos ricos jaezes, às lâminas e punhos das armas. As armaduras dos estrangeiros contrastam com os corpos quase nus dos bramaas de longos cabelos negros, cujos trajos de guerra são as tatuagens sagradas, gravadas a tinta azul com ferro quente, a cobrir-lhes todo o corpo, dos ombros aos joelhos, para os fazer invencíveis.

A fanfarra de incontáveis instrumentos é ensurdecedora e desencoraja qualquer conversação. O tiro de bombarda anuncia a abertura das portas da cidade por onde sai o corpo da guarda, de alguns milhares de homens, com trezentos elefantes, que o vencedor enviara na véspera para escoltar a família real, seguidos por bramaas nobres que os vieram receber. Após eles, surge el-rei com o rolim-mor que serve de intermediário aos dois soberanos e, em três palanquins, os quatro filhos de Chaubainhaa e a esposa, irmã mais nova do rei de Pegu deposto por Tabinshwethi pouco tempo antes. As liteiras vêm no meio de quarenta moças, filhas dos fidalgos do Martavão, com os rostos desfeitos em lágrimas, rodeadas por um cordão de sacerdotes descalços, com as cabeças rapadas, a rezarem e a consolarem o triste rebanho. Fecham o cortejo dos vencidos, algumas companhias de arcabuzeiros, alabardeiros, piqueiros e, por último, um batalhão de cavaleiros.

Chaubainhaa traz vestida uma cabaia comprida de veludo preto e tem os cabelos, as barbas e as sobrancelhas rapados; com um baraço ao pescoço, monta um pequeno elefante sem atavios, em sinal de pobreza e humildade, como quem já despreza os bens deste mundo e está prestes a meter-se num convento. Esta humilhação pública da família real causa uma dor tão profunda nas gentes do Martavão, aglomeradas às portas da cidade, que as mulheres soltam grandes gritos, dão bofetadas no próprio rosto e ferem-se com pedras na cabeça.