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A rainha, com a comoção que lhe causa o pranto do povo, sofre um vagado e tomba desacordada nos braços das aias que choram e pedem clemência. Ao ouvir os gritos das mulheres, Chaubainhaa desce à pressa do elefante para socorrer a esposa e sossegar os filhos que a abraçam soluçando.

– Oh, deuses inclementes! – exclama amargurado. – Porque castigais estes inocentes que nunca pecaram! É esta a vossa divina justiça?

– A rainha morreu! – bradam na assistência os que se acham mais perto da cena. – Nhay Canatoo acaba de morrer!

O coro de gritos e lamentações da multidão propaga-se como um rastilho aceso e as mulheres fazem o seu luto arrancando os cabelos às mancheias ou rasgando o rosto com as unhas.

El-rei pede água, esparge o rosto da esposa para a fazer recobrar ânimo e, quando ela abre os olhos, ajuda-a a erguer-se com palavras de carinho e de esperança. Alçado de novo para o lombo do elefante, o cortejo retoma o andamento, para ser de novo interrompido alguns passos mais à frente, quando el-rei quase perde o juízo ao passar diante dos portugueses, perfilados em muito boa ordem. Chaubainhaa pára o elefante, ao ver João Caeiro, gritando-lhe bem alto para que a multidão o ouça:

– Portugueses fementidos, que pagastes com traição o bem que sempre vos fiz! Tenho esta minha rendição por menos dor e afronta do que ver diante de meus olhos gente tão ingrata como vós. – E, virando a cabeça para trás para mostrar como a sua vista lhe causava asco, roga: – Ou me matem aqui já ou os tirem dali, porque não hei-de passar mais adiante!

Esconde o rosto no cachaço do animal e o capitão da guarda chama João Caeiro e grita-lhe do alto do seu elefante:

– Despeja já o caminho, porque não é lícito que gente tão má como vós trilhe a terra que possa dar fruto. Que os deuses perdoem a quem meteu na cabeça a el-rei que podíeis prestar para alguma cousa. Rapai as barbas, para que se não engane a gente convosco e servir-nos-eis de mulheres por nosso dinheiro.

Os bramaas da guarda expulsam os setecentos portugueses do alardo, para sua grande vergonha e humilhação, el-rei prossegue no seu elefante até à estância das tendas onde o espera, com pompa e alto estado, o seu conquistador a cujos pés se humilha, pedindo clemência para a esposa e os filhos.

Depois da rendição, Tabinshwethi manteve as portas da cidade cerradas e guardadas por bramaas fiéis, para arrecadar o tesouro dos reis do Martavão, antes de permitir aos seus homens e aliados o saque à escala franca, conforme lhes prometera. Quando por fim soa o tiro de bombarda, dando sinal para a pilhagem, uma multidão aguilhoada pela espera e a cobiça do roubo, lança-se contra as portas da cidade como um enxame de gafanhotos famintos, entupindo as entradas, empurrando-se, esmagando-se e espezinhando os que caem, para serem os primeiros a deitar a mão às riquezas.

O saque durou três dias, num cenário de cruel mortandade, sendo superior a tudo o que até então os bramaas tinham ganho nas suas conquistas: relicários, objectos de culto e ídolos de ouro, prata e pedraria dos templos; caixotes com as peças de seda e porcelanas da China; martabanas cheias de pimenta e drogas, achadas nos gudões e casas dos mercadores de muitas nações. Por ordem do conquistador, as varelas mais santas, as casas do rei, dos nobres e da gente mais rica foram arrasadas e queimadas, assim como as dos pobres, até nada restar da bela e rica Martavão.

Após o saque, o tirano mandou erguer dezenas de cadafalsos no alto de uma colina, que se podia ver da cidade. Uma procissão, semelhante a um saimento, sobe o outeiro com monges de muitas seitas, esquadrões de soldados a pé com os seus comandantes, os principais cavaleiros bramaas e os elefantes de guerra escoltam a rainha Nhay Canatoo com os quatro filhinhos e, presas a quatro e quatro, as suas cento e quarenta aias – todas esposas e filhas da gente principal do reino. Tabinshwethi faltara ao juramento que dera a Chaubainhaa e mandava executar aquela crueldade por vingança e pela má inclinação que sempre teve contra as mulheres.

No recinto da forca, arautos a cavalo lêem o pregão para uma assistência silenciosa:

– Ouçam e vejam as gentes do mundo a criminosa justiça que manda fazer o deus vivo, Senhor da Verdade, rei soberano das nossas cabeças, que quer e lhe praz que morram todas estas cento e quarenta mulheres entregues ao elemento do ar, porque este seu conselho, seus maridos e pais se levantaram com esta cidade e mataram nela doze mil bramaas do reino de Tungoo.

– São todas moças e tão formosas. Que lástima!

– Como pode, o tirano? – indigna-se Fernão. – Pardeus! Muitas delas são quase crianças, podiam lá conspirar contra el-rei dos bramaas!

Na forca mais alta serão penduradas pelos pés, para sofrerem o martírio de uma longa agonia, a rainha e as quarenta açafatas do seu séquito, filhas dos mais nobres fidalgos do reino; a seu lado, há uma forca mais pequena para o mesmo suplício dos dois príncipes e das duas princesas, crianças de poucos anos, a cuja vista os cativos sobreviventes de Martavão soltam os mais sentidos prantos, esquecidos da sua própria miséria. As outras vinte forcas estão destinadas às cem donas e donzelas restantes.

Vendo a rainha encostada a uma aia, como morta, uma formosa moça brada-lhe de entre o primeiro grupo que os algozes conduzem ao patíbulo:

– Senhora, já que por tuas cativas nos embarcamos contigo nestas tristes casas da morte, consola-nos com a vista da tua presença, para que partamos com menos dor.

– Não vos partais já, irmãs minhas! – roga Nhay Canatoo, às que lhe estão mais próximas. – Ajudai-me a levar os meus filhinhos.

Chaubainhaa, para maior castigo, é forçado a assistir à execução antes de lhe ser dada a morte por afogamento, pois nem mesmo o tirano bramaa ousava desafiar a lei e as suas divindades com o derramamento de sangue real; o senhor de Martavão é lançado vivo ao rio, com uma pedra ao pescoço, acompanhado pelos fidalgos que lhe eram leais.

Com a conquista de Martavão, Tabinshwethi satisfizera a sua vingança e alcançara o domínio absoluto do vasto reino de Pegu. Estabeleceu postos militares em lugares estratégicos na região para vigiar os seus inimigos, sobretudo o reino do Sião, e deixando como governador Sa-kyay, o seu mordomo-mor, partira para a capital Pegu a fim de festejar o seu triunfo.

Nessa mesma noite, Fernão vê-se rodeado por soldados bramaas que vêm prendê-lo com pregão de traidor, pela carta que ele trouxera do capitão de Malaca para Chaubainhaa, a oferecer-lhe socorro contra o rei tungoo. Com amargura, enquanto é conduzido ao tronco para enfrentar a pena de morte dada aos traidores, o prisioneiro descobre que foi denunciado a Sa-kyay por um português amigo de Pêro de Faria, a quem o capitão recomendara numa missiva que ajudasse o seu embaixador em caso de necessidade.

Não só sofre de novo as agruras da prisão, como mais uma vez se vê espoliado de todos os seus bens pela ganância do governador que se apodera dos juncos e das fazendas, depois de ter condenado à morte e justiçado o Nakoda Mahmmude e as suas equipagens de chins e malaios. Fernão não duvida de que o aguarda o mesmo destino, porque Sa-kyay não o pode deixar vivo para testemunhar o roubo que fez, às escondidas de Tabinshwethi.

Como teria de justificar perante el-rei a morte do estrangeiro, o governador forjara uns libelos cheios de falsas acusações de traição. Procura arrancar-lhe a confissão pública dos mesmos, com perguntas feitas durante terríveis tratos que lhe mandava dar na picota, de muitos açoites e pingos de fogo com canudos de lacre. Sabendo que a morte é certa, Fernão brada, por entre gritos lancinantes de dor, à multidão que assiste ao seu tormento:

– Acusam-me falsamente para me roubarem a fazenda. O capitão João Caeiro, que está em Pegu, o há-de dizer a el-rei para que castigue os culpados.

Ao ouvi-lo Sa-kyay empalidece de medo, porque se Tabinshwethi vier a saber que ele matara o português para lhe tomar os cem mil cruzados que o capitão de Malaca enviara a Chaubainhaa, pedir-lhe-á contas desse dinheiro e, mesmo que lho entregue todo, ganancioso como é o tirano, há-de exigir-lhe muito mais, causando a sua ruína e a desgraça da sua família.