– Em Cochim não cessei de rogar por carta a el-rei e em presença a todos os oficiais da Índia, para não se olvidarem de mim quando fossem ao Preste. O governador lembrava-se de como eu o havia importunado com o mesmo pedido durante dois anos, por isso, disse ao senhor embaixador, na presença de todos: – D. Rodrigo, eu não mando o padre Francisco Álvares convosco, mas a vós com ele e cousa alguma façais sem seu conselho.
– Bem avisado foi ele! – concorda Pêro, com um sorriso. – Sei que vossa reverência também contribuiu muito para o bom resultado dela.
O padre ruboriza-se de prazer e conclui o relato:
– Com mais algumas nomeações, em poucos dias ficou a delegação pronta e o governador escreveu uma carta ao Preste, contando-lhe da embaixada de Duarte Galvão e dando por escusa de se levar um presente tão pobre, ter-se perdido o tesouro que lhe levávamos na nau Santo António que se afundou às portas do estreito.
– Afinal que haveis oferecido a Lebna Dengel para o deixar tão entrunfado?
– Um presente assaz mesquinho. As melhores peças são um órgão frautado e um cravo que vieram com o organista Manuel de Mares, ainda do tempo de Duarte Galvão. O resto foi o que de melhor se pôde achar na armada: uma espada, um punhal de grande preço, umas ricas couraças, um capacete, muitas lanças douradas, quatro panos de armar e um mapa-múndi para lhe darem a entender a redondeza da Terra. Havia ainda dois berços11, quatro câmaras e pelouros, dois barris de pólvora que tivemos de abandonar pelo caminho, por serem difíceis de transportar.
– Deveras pobre, meu padre, para um moço rei tão cobiçoso como Lebna Dengel, não admira que se tenha amonado. – Pêro ri-se, acrescentando: – Alegrai-vos, todavia, que tendes sobejas razões para estardes todos orgulhosos. Sois a primeira embaixada do Ocidente a viajar pelo interior da Abássia.
O padre franze o rosto numa careta de fingido terror, ao dizer:
– Penámos as penas do inferno e comemos o pão que o diabo amassou! Partimos da praia de Arquico aos vinte dias de Abril deste ano de quinhentos e vinte, vestidos com os nossos melhores trajos, para maior lustro e cor do cortejo, só chegando à vista do arraial do Preste, em Xaoá, a dez de Outubro, depois de cruzar toda a Etiópia. Foi a maior, a mais penosa e mais perigosa viagem do mundo!
– Bem sei, padre Francisco, bem sei! – Pêro solta uma sonora gargalhada: – Lembrai-vos de que eu passei pelo mesmo, antes de vós!
6 Também Franges ou Francos. Nome dado pelos árabes aos cristãos ocidentais.
7 Malayalam S-am-uttiri (Senhor dos Mares) era o título do rei hindu de Calecut, o principal porto de Kerala.
8 Irascível.
9 Que falam muito, de si e dos outros.
10 Gabarolas.
11 Peças de artilharia, curtas.
A riqueza vem como a tartaruga e foge como a gazela
(árabe)
Tornados nós ao porto de Arquico onde achámos os nossos companheiros, depois de estarmos ali mais nove dias acabando de espalmar as fustas e provê-las do necessário, nos partimos uma quarta-feira, seis dias do mês de Novembro do ano de 1537. E levámos connosco o Vasco Martins de Seixas com presente e carta que a Mãe do Preste João mandava ao Governador e levámos também um Bispo Abexim. E velejando desde uma hora ante manhã, que saímos do porto, fomos com ventos bonanças ao Gocão12, antes de chegarmos ao ilhéu do arrecife, vimos três velas surtas, e parecendo-nos que seriam gelvas ou tarradas13 da outra costa, fomos guinando a elas à vela e a remo, porque já nesse tempo o vento nos ia acalmando, e com tudo porfiámos tanto nesta ida, que em espaço de quase duas horas nos chegámos tão perto delas que lhe enxergámos toda a apelação dos remos e conhecemos que eram galeotas dos turcos, pelo qual nos tornámos a fazer na volta da terra com a mor pressa que pudemos, como quem desejava de fugir do perigo em que já estava metido.
(Peregrinação, capítulo V)
Na manhã seguinte, ainda com a cabeça pesada de sono, da talla e do hidromel que emborcara, Fernão e os seus companheiros passam por uma pasmosa experiência, quando Henrique Barbosa os conduz às casas da rainha, situadas no cume da amba de Damaa. A montanha tem uma base quadrada, é duas vezes mais alta do que a maior torre de Portugal, subindo um bom pedaço do mesmo tamanho e a pique até ao cimo, onde se estende em forma de sombreiro, com a copa virada para baixo e a aba toda direita, como uma planura circular que tivesse sido talhada à mão.
Os recém-chegados acham-na inacessível, custando-lhes a crer que alguém, que não seja um eremita louco, consiga sequer viver no seu cume, quanto mais construir casas, igrejas e fortalezas. Para sua maior surpresa, o capitão mostra-lhes uma porta cravada na rocha, guardada por homens armados, por onde acedem a um caminho de muitas voltas, tão torto e estreito que têm de o subir em fila, um após outro, com muito trabalho, até dois terços da serra, onde faz um pequeno tabuleiro em que não descortinam qualquer passagem.
– Estamos num beco sem saída! – exclama Fernão. – Como é que.
Cala-se antes de terminar a frase. Do céu, bem atado a umas correias de couro cru, muito fortes, vem descendo um cesto onde cabe um só homem, o único meio de transporte para atingir o cume da fortaleza de pedra que é a própria montanha ou amba de Damaa. Um a um os emissários entram no cesto e são içados para as nuvens, mareados dos solavancos e da bebedeira da noite anterior.
Pasmam do que os seus olhos vêem e Barbosa lhes descreve quando se lhes junta com os seus principais oficiais. O cume em forma de sombreiro é tão saliente que domina todo o sopé da montanha, de modo que ninguém pode chegar a ela sem ser visto. Na sua aba dera-lhe a natureza como que uma tesourada, fazendo-lhe um pequeno rasgão, a modo de escotilha de navio, por onde apenas podia passar um cesto ou uma padiola alados por uma corda com um só homem de cada vez. A abertura era cerrada por portas de ferro.
O sombreiro mediria um quarto de légua de circunferência e nele havia duas grandes cisternas que recolhiam água das chuvas no Inverno, o bastante para abastecer os cerca de quinhentos moradores e regar os campos semeados de trigo, cevada, milho, favas e lentilhas, além de terras de pasto com muitas cabras, currais e capoeiras e inúmeras colmeias.
– Aqui está uma fortaleza que não se pode tomar – exclama Fernão.
– Sabla Vangél vive aqui recolhida há vários anos – concorda o feitor. – Dizem que el-rei de Zeila teve esta serra cercada com todo o seu arraial, para deitar as mãos à rainha, que ele cobiçava por ser formosíssima, como vereis que ainda é, se ela vos mostrar o rosto. O velhaco retirou-se ao fim de um ano, reconhecendo que não a podia vencer pela fome e pela sede.
Dirigem-se em silêncio à capela onde a mãe do Preste foi ouvir missa, nesse Domingo, e aí quis receber os emissários com todas as honras. Os portugueses ajoelham-se na sua frente, beijam-lhe o leque que ela tem na mão e fazem-lhe outras cortesias ao modo da terra como o feitor lhes ensinou. Sempre de joelhos escutam a sua doce saudação, trasladada pelo língua:
– A vossa vinda, cristãos de Portugal, é para mim tão agradável e foi sempre tão desejada de meus olhos, como o fresco jardim deseja o borrifo da noite. Vinde em boa hora e sentai-vos nessas esteiras que quero saber novas de onde vindes.
É um grande privilégio que lhes concede, convidando-os a sentarem-se a poucos passos da sua pessoa.
– Como se chama o Papa que agora reina? – pergunta, com a boca cheia de riso, mal os vê aquietados. – Quantos reis há na Cristandade? Porque se descuidam eles tanto na destruição do turco?
Respondem-lhe o melhor que podem, mas Sabla Vangél insta-os, cada vez mais séria, com perguntas que mostram a sua ansiedade pelo auxílio que tarda:
– Não sabeis nada, então, da resposta do vosso rei ou do governador da Índia ao meu pedido? Não enviaram nenhuma armada?
– A distância é imensa, Alteza – responde Fernão, apiedado da sua ansiedade e mentindo um pouco a fim de a tranquilizar. – Para ir e vir à Europa, para mais tratando-se de negócios de tanta monta e demorados pareceres, serão precisos três anos senão mais.