A sentença de morte é revogada, sendo o réu condenado ao confisco de toda a sua fazenda e enviado para Pegu, em ferros, como cativo d’el-rei.
V
Escapar ao tigre para ser comido pelo crocodilo
(siamês)
Há também costumes tais
em Pegu, que homens competem,
a qual deles terá mais
em seus membros genitais
cascavéis, onde os metem,
a sua carne cortando;
e por tempo se soldando
ficam dentro entremetidos:
dizem que são mais queridos
das fêmeas assi usando.
E moças vão prometer
a ídolos virgindade,
e se vão oferecer,
e por si mesmas corromper
em sinal de castidade,
em umas lájeas polidas,
muito limpas, mui luzidas,
em um corno mui polido,
que no meio está metido,
se rompem nele subidas.
(Miscellanea, de Garcia de Resende)
Tabinshwethi queria aproveitar a sua boa fortuna para acometer e conquistar o reino de Avaa aos shans, mas para isso teria de tomar a cidade de Prome, que estava bem fortificada e defendida por bombardas e tranqueiras. A sua estratégia seria a mesma que usara no Martavão, montando-lhe apertado cerco para a render pela fome.
Sem permitir aos soldados que voltassem para as suas terras, preparou o seu exército repartindo-o em dois corpos, indo com o mais numeroso pelo rio Irãwadi acima, na sua armada de seroos, os navios de guerra em forma de animais, cujas proas eram cabeças de cavalos, patos, crocodilos, elefantes, dragões e tubarões, assim como incontáveis tee-lees, as demolidoras embarcações de madeira de teca, rasas, movidas a remos curtos por mais de cinquenta remadores, com proas muito fortes onde ia montado um pilão, semelhante a uma mão de almofariz, seguro por fortes correias. O som vibrante dos tambores marcava o compasso dos remos e o ritmo das canções de guerra entoadas por milhares de homens. Por terra, ao longo da margem oriental do rio, seguia o comandante-mor Bayin-naung com o segundo troço do exército e os elefantes de guerra.
O rei de Prome estava sujeito ao rei de Avaa, com cuja filha casara e a quem pagava tributos. Tendo conhecimento das manobras de Tabinshwethi, o sogro veio com os chefes shans das tribos do Norte em socorro do genro. Também o rei de Arracão, que temia e odiava o desapiedado conquistador tungoo, se apressara a responder ao pedido de socorro feito pela irmã do seu aliado de Prome, enviara-lhe uma frota pelo rio e um batalhão por uma passagem das montanhas, de modo a apanhar o inimigo entre dois fogos.
Os batedores de Bayin-naung foram os primeiros a descobrir as forças dos talaing, que lhes cortavam o caminho do outro lado do rio, a algumas milhas de distância de Prome. Um murmúrio de revolta e de medo percorreu as fileiras do exército ao verem que o adversário era em muito maior número.
Sabendo como os homens estavam exaustos das campanhas anteriores e fartos da crueldade de Tabinshwethi, o general temeu a deserção em massa dos seus homens e tratou de os ocupar com o corte das árvores e a construção das jangadas para atravessarem o rio, mantendo-os sob apertada vigilância, castigando a menor falta ou sinal de fraqueza.
A mensagem do cunhado chegou quando já quase todo o exército tinha passado para a outra margem. O rei de Bramaa ordenava-lhe que, se encontrasse o inimigo, não atacasse e esperasse por ele. Bayin-naung pensou que o nervosismo da espera acabaria por destruir o pouco ânimo das tropas e ele teria ainda mais dificuldades em suster a debandada no momento do ataque. Chamou um jovem oficial, seu parente, e enviou-o a Tabinshwethi com a informação de que já tinha travado combate e vencido o inimigo.
– Anunciaste uma vitória, antes sequer de termos começado a batalha – disse-lhe o seu lugar-tenente, estarrecido, embora sabendo que o general era muito estimado pelo rei, por ser filho da sua velha ama, seu companheiro de infância e de todas as campanhas, além de marido da sua irmã. – Temos tudo a nosso desfavor e a derrota quase certa. Imaginas o castigo que nos dará el-rei?
– Se perdermos é porque morremos aqui. E ninguém pode punir os mortos – respondeu Bayin-naung e, vendo que já todos haviam atravessado o rio, deu ordem para destruírem as jangadas.
Ouviu-se um murmúrio angustiado dos homens que o lugar-tenente pôs em palavras:
– Os inimigos são dez para um. Sem as jangadas ninguém logrará sair vivo daqui.
– Sem dúvida – retorquiu o general, acrescentando em alta voz para os homens: – Amigos, agora temos de vencer!
Sem possibilidade de fuga, os seus homens lançaram-se num combate de morte, fazendo fugir os adversários que foram acolher-se dentro das muralhas de Prome. Como alguns anos antes, Tabinshwethi tinha tentado conquistar esta cidade e falhado, para vencer, desta vez, Bayin-naung resolveu recorrer à astúcia e à armada dos alevantados portugueses sob o comando de João Caeiro, com os seus arcabuzes e artilharia ligeira em que eram invencíveis.
Quando as tribos do Norte, chefiadas pelo sawbwa de Avaa, desceram pelo rio como um enxame de abelhas de ferrões aguçados em socorro dos sitiados, Bayin-naung avançou com o seu exército um dia de marcha para norte e confiou a sorte da batalha aos arcabuzeiros portugueses que as derrotaram numa emboscada, pondo-as em fuga.
Ao mesmo tempo, o general forjou uma carta em nome do rei de Prome que mandou entregar às tropas de Arracão, que vinham por terra através de uma passagem nas montanhas, levando-os a cair noutra emboscada, vencendo-os e forçando-os à retirada. A frota de socorro que avançava pela costa, quando soube da derrota da infantaria, também regressou à sua terra.
Diante de todo o exército reunido, Tabinshwethi tirou os preciosos anéis dos seus dedos para os oferecer a Bayin-naung, em reconhecimento de tão magníficas vitórias, mandando entregar-lhe três camadas de almofadas para nelas se reclinar, como convinha ao seu alto estado e novo título de Ainshêmeng ou Príncipe Coroado.
Cinco meses durou o cerco à cidade de Prome, defendida pela rainha regente, uma mulher moça e de ânimo varonil, mãe do rei de treze anos. Assolados pela fome e doença, os sitiados foram desertando às centenas e, por fim, alguns traidores peitados por Tabinshwethi abriram os portões da cidade, deixando-a à mercê do impaciente tirano e da sua soldadesca que a saquearam sem piedade.
Da varanda do palácio o rei de Bramaa podia contemplar a praça onde fora supliciada a gente nobre que não tinha desertado, fiel ao rei e à sua mãe. Estava repleta de soldados que festejavam a vitória e ele ordenou-lhes que trouxessem os corpos das duas mil crianças mortas durante o saque, os cortassem em pedaços e os dessem a comer aos elefantes de combate que berravam de fome.
À semelhança do que fizera no Martavão, o tirano exerceu as maiores sevícias sobre as donas e donzelas da corte, antes de lhes dar cruel morte. Eram vítimas de escol para saciar a sua vingança, mas nenhuma como a rainha lhe dera esse particular gozo em humilhar e causar dor a uma mulher, porque esta filha do rei de Avaa o desprezara em tempos, tal como havia feito a do Martavão, preterindo-o a favor de outros reis, por ele não ser então um príncipe de grande estado. Sentiu na alma o mesmo vexame de outrora, à vista da sua beleza, do seu ar altivo, apesar de a terem lançado a seus pés, vencida e à sua mercê.
– Como se atreve esta escrava a usar jóias do tesouro de Prome que me pertencem? – bradou, arrancando risos aos senhores principais que o acompanhavam e enchiam a sala do trono, ávidos de divertimento. Deixou que o alvoroço serenasse e ordenou: – Despe-te, cróia, barregã!
Fez-se silêncio na sala, mesmo os mais ébrios de vinho e de sangue não ousaram rir ou proferir obscenidades. A mulher ergueu a cabeça e olhou o tirano, mas não esboçou qualquer gesto para lhe obedecer. Tabinshwethi leu-lhe nos olhos o desprezo e a repugnância de quem olha para uma criatura imunda e o vexame deu lugar a um ódio cego que o entonteceu de mareio.