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– Desnudai a escrava! – gritou com voz rouca aos guardas que tinham assaltado o harém e trazido as mulheres à sua presença.

Ergueram-na do chão com brutalidade, arrancaram-lhes as pulseiras, os anéis e os brincos, depois os panos, um a um, lançando-os aos pés do conquistador como troféus de guerra. O verdugo ansiava pelos gritos, lágrimas e súplicas da sua vítima, que lhe apaziguariam o orgulho ferido, mas a mulher parecia uma estátua inanimada, um desses ídolos de marfim de que ele se apoderava quando saqueava os templos das cidades conquistadas.

Era de porcelana fina o rosto pálido onde brilhavam os negros olhos secos de lágrimas e sem expressão; era de delicado marfim o belíssimo corpo onde os panos de seda e brocado, rasgados com violência, haviam imprimido marcas como veios e se revelava numa esplêndida nudez, a que a maternidade conferira o fulgor da sensualidade na redondez firme dos seios, na curva opulenta das ancas e das nádegas.

No pesado silêncio da sala do trono apenas se ouviam as respirações opressas ou ofegantes dos homens, de olhos presos ao corpo da rainha, espiando com avidez o arrepio da pele, o fremir das ancas e das coxas, o balancear das nádegas e dos seios, leve ou brusco, segundo o impulso que os verdugos imprimiam aos seus gestos. Não havia um só dos nobres senhores bramaas, talaings ou estrangeiros, que não estivesse disposto a trocar o seu espólio do saque da cidade por aquela mulher. Se Tabinshwethi a quisesse dar em alvíssaras, haveria de ser ferozmente disputada, contudo, o senhor de Bramaa tinha outros desígnios quanto ao destino da rainha e das princesas, suas açafatas.

– Não vales sequer para puta do mais baixo dos meus oficiais – lançou-lhe a injúria com violência e decretou a sentença que fez estremecer de horror os portugueses: – Levai-a com as outras cróias do seu séquito para o pátio, entregai-as aos meus soldados. É o prémio que lhes dou pela sua valentia e esforço que nos alcançaram a vitória.

– Nas guerras são sempre as mulheres e as crianças quem mais sofre – murmurou João Caeiro com pena.

– E este bárbaro leva a palma a todos os tiranos – respondeu Gonçalo Coutinho, apesar de não ser inocente, no campo da violência. – Se a paga não fosse tão boa, já há muito que me fora.

Os gritos de júbilo da soldadesca, quando a rainha e as princesas lhes foram entregues nuas para nelas cevarem a sua luxúria, atraíram Tabinshwethi à janela para receber as aclamações e ali se quedou algum tempo, com os seus principais, rindo-se e fazendo apostas sobre os jogos brutais que os homens praticavam com as cativas.

Quando o último dos homens penetrou a rainha já desacordada e, satisfeito a largou semimorta no chão, os carrascos, por ordem d’el-rei, acabaram de a matar, rasgando-lhe as carnes a golpes de chicote. O corpo retalhado foi atado ao do rei, seu filho, antes de o lançarem vivo ao rio com uma pedra atada ao pescoço.

Cumprida a vingança, o tirano preparou o seu regresso à capital. Para o transporte da sua poderosa máquina de guerra, tinha mandado construir uma grande estrada para carroças, desde Pegu até Prome, por onde agora regressava em triunfo, a fim de ser solenemente coroado rei dos reis, segundo os antigos ritos talaing e bramaa. Conhecedor da profecia de que nenhum rei com um nó nos cabelos, ao modo dos bramaas, poderia reinar sobre os pegus, cortou o cabelo da feição dos talaings, todo à volta da cabeça, com um tufo redondo no alto, escolhendo por coroa o diadema dos reis pegus.

Deste modo prestava homenagem aos dois principais pagodes da cidade e assegurava, se não a fidelidade pelo menos a boa vontade dos mons de Pegu e dos bramaas de Tungoo, o seu reino natal, de onde partira com a idade de quinze anos para a conquista e unificação de todos os reinos da Alta e Baixa Birmânia, que se achavam nas mãos dos restantes sawaws – os governadores ou reis, como preferiam ser chamados –, sobretudo os da raça shan do norte, sempre desunidos e cujo reino mais forte era Avaa, que ele já tinha na sua mira para futura conquista.

No cárcere de Pegu, ainda mal refeito dos tratos que recebera no Martavão, a mando do mordomo-mor Sa-kyay, para não se deixar cair no desespero, Fernão repetia para consigo que a paciência é unguento para todas as chagas e agradecia aos céus a graça de ainda estar vivo.

Embora já não alimentasse esperanças de receber ajuda de João Caeiro ou de qualquer dos seus homens, sentira novo ânimo quando ouvira os sons de festa da entrada régia, secundados pelo tilintar, repicar e tinir mavioso dos guizos e campainhas que os pegus, seus companheiros de cela, traziam metidos no órgão da virilidade. Sendo eles muitos, conjugavam-se em concerto de carrilhão, tangidos ao ritmo das danças e pulos alvoroçados pela expectativa do perdão geral que Tabinshwethi haveria de conceder à conta do seu triunfo. A partir desse dia, Fernão começara a bajular os carcereiros com promessas de recompensa, se lograsse sair em liberdade, como não deixaria de suceder, logo que o capitão Caeiro soubesse do mal-entendido que ocorrera no Martavão e da sua prisão.

O aventureiro mal podia imaginar que a roda da Fortuna começava a girar, para mais uma vez o lançar numa perigosa aventura, em que, como criado do embaixador do rei tirano, juntamente com outros sete cativos portugueses, entre os quais se achava Gaspar de Meireles, seu antigo companheiro de peregrinação pela China, iria percorrer as terras daquele sertão nunca antes pisadas por um europeu, até ao misterioso reino do Calaminham, sito bem cerca do Tecto do Mundo ou do Paraíso Terreal.

Odisseia já referida no Sexto Mar, devendo a narradora lembrar ao seu leitor que a viagem a Sunda, no mar de Java, teve lugar entre estes episódios de Pegu e os de Sião que se seguem, esperando não ser tachada de redundante, nem acusada de cansar o leitor com tantos sobressaltos narrativos, quando mais não deseja do que dar-lhe a conhecer as andanças deste nosso incansável viajante.

MALACA

(Olho do Sol)

[A cidade de Malaca, apesar de não ter nada de seu, tem todalas cousas que há no mundo.] Posta e situada em começo de muitas monções e cabo de muitas monções, e as terras da banda da Índia que são Cambaia, toda a Índia, toda Bengala, o reino de Pegu, têm necessidade das mercadorias que vêm da China e da Cauchinchina, Sião, Léquios, os Luções de Burneo, o cravo de Maluco, e de maças e noz de Banda, e de sândalo de Timor, e assi o ouro dos rios de Menancabo e de Java e de Candia, e os que destas partes vêm, têm necessidade das mercadorias que das outras partes ditas vêm, e quanto uns vêm com uma monção, não podem ir para as outras partes com aquela monção, e por isso [Malaca] é grande, e chave de tudo, onde todos fazem escápola194.

(Carta de D. Jorge de Albuquerque a el-rei D. Manuel.

Escrita em Malaca a 8 de Janeiro de 1515)

194 Escala.

VI

Onde houver uma agulha, sempre haverá linha

(malaio)

Carta do Irmão Francisco Xavier aos seus confrades da Europa:

Encontrei em Malaca um mercador português que vinha de uma terra de grande trato, a qual se chama China. Este mercador disse-me que lhe perguntou um homem chinês mui­to honrado, que vinha da corte do rei, muitas coisas, entre as quais lhe perguntou se os cristãos comiam carne de porco. Respondeu-lhe o mercador português que sim, e lhe disse por que lhe perguntava aquilo. Respondeu o chinês que, na sua terra, há muita gente entre umas montanhas, apartada da outra gente, a qual não come carne de porco e guarda muitas festas195. Não sei que gente é esta: se são cristãos que guardam a lei velha e nova, como fazem os do Preste João, ou se são as tribos dos judeus, que não se sabe deles. Porque eles não são mouros, como todos dizem.

De Malaca, vão todos os anos muitos navios de portugueses aos portos da China. Eu tenho encomendado a muitos, para que saibam dessa gente, pedindo-lhes que se informem muito das ceri­mónias e costumes que entre eles se guardam, para por elas se poder saber se são cristãos ou judeus. Muitos dizem que S. Tomé Apóstolo foi à China e que fez muitos cristãos; e que a Igreja da Grécia, antes de os portugueses senhorearem a Índia, mandava bispos para que ensinassem e baptizassem os cristãos que S. Tomé e seus discípulos nessas partes fizeram.