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Havia mês e meio que o padre Francisco Xavier chegara a Malaca, para aguardar a monção que o levaria a Macassar, nas ilhas Celebes, nome dado pelos portugueses às Sulawesi, a fim de pregar a palavra de Cristo que haveria de arrancar às suas idolatrias aqueles gentios que andavam sempre em guerra uns com os outros, ensinando-os a viver em paz. O anterior capitão da fortaleza enviara para a ilha o padre Vicente Viegas, provisor e chantre da sé de Malaca, por isso, o vigário D. Afonso Martins aconselhara-o a esperar pelo seu regresso para decidir, segundo as informações que ele lhe desse, da sua ida para lá ou para Amboíno, uma das Molucas que necessitava urgentemente de padres.

Recusara o convite do vigário e de Simão de Melo, o novo capitão de Malaca, para tomar pousada em suas casas, escolhendo para morada o hospital dos Pobres, a fim de estar mais próximo dos necessitados, pois não faltavam obras pias em que ocupar o seu tempo. Aos domingos pregava na sé, a igreja matriz de Nossa Senhora da Assunção, mandada construir por Afonso de Albuquerque logo após a conquista da cidade, no ano de mil quinhentos e onze, no extremo noroeste das muralhas da forta­leza, perto do rio, aonde acorriam muitos fiéis para o ouvir. E todos os dias, durante mais de uma hora, ensinava as orações aos meninos, filhos de portugueses e de outros cristãos.

Visitava também o hospital da Irmandade da Misericórdia ou hospital Real, sito no lado oposto da sé, no entanto era o hospital dos Pobres que lhe tomava mais tempo e cuidados, a confortar e confessar os doentes, a dizer-lhes missa e a dar-lhes a comunhão. Não tinha mãos a medir com as confissões e afligia-se com a falta de tempo, temendo não chegar para todos os pedidos, embora não recusasse ninguém, pela necessidade em que aquela gente se achava de salvação.

O que vira, à chegada a Malaca, mostrara-lhe como era verdadeiramente urgente a presença moralizadora dos jesuítas naquelas paragens, pois até os padres e frades levavam ali – ainda mais do que em Goa, por se acharem mais longe da alçada do governador e do patriarcado – uma vida de vício, quase não se distinguindo dos comuns pecadores.

A cidade tinha o maior movimento de mercadorias que jamais vira em qualquer porto da Europa, com um vaivém ininterrupto de embarcações, quer de naus e grandes juncos para as longas derrotas das boas monções, quer dos mais desvairados tipos de barcos gentios que faziam o comércio de cabotagem entre as ilhas, aproveitando os ventos e os caminhos de mar tradicionais. A Malaca vinham ter os mais belos, luxuriosos e ricos produtos, incluindo escravas, de todas as partes do Oriente para ostentação, gozo e prazer de uma gente ainda mais licenciosa do que a da capital do Estado da Índia.

Os portugueses e os casados brancos eram a gente principal de Malaca, distinta dos cristãos da terra, os gentios baptizados, muito mais numerosos. Os portugueses compravam verdadeiros rebanhos de escravas, para seu próprio prazer ou para porem a render os seus encantos, se não tivessem meios de fortuna, sendo o caso mais escandaloso o de um homem que possuía um harém de vinte e quatro bichas, moças cativas de diferentes raças, com as quais vivia em descarada mancebia. As crianças mestiças, escravas ou livres, não tinham conto. Portanto, não eram só os gentios de Malaca e outras terras da Índia que careciam de orientação espiritual, havia muito trabalho a fazer entre os soldados, os mercadores e os moradores.

Um missão adequada à muito jovem Companhia de Jesus, de que ele fora um dos fundadores, quando, poucos anos antes, juntamente com Inácio de Loyola e alguns companheiros de estudos de Paris, havia feito os votos de castidade, pobreza e missionação. E, para não se dispersarem pelas ordens existentes, perdendo-se pelo mundo, haviam criado a nova ordem religiosa.

A bula do Papa Paulo III confirmara a Companhia de Jesus, no dia vinte sete de Setembro do ano da graça do senhor de mil quinhentos e quarenta. Para os diligentes irmãos que, ardiam de fervor e espírito de cruzada – talvez por serem, na sua maioria, provenientes de famílias de antiga nobreza e cavalaria –, o passo seguinte consistira em embarcar para a Índia em missão de evangelização.

Ele fora dos primeiros a partir, porém, ao desembarcar em Goa, sofrera uma grande desilusão, ao ver como as confrarias de franciscanos, de dominicanos e até de padres seculares se haviam adiantado a fundar igrejas, conventos, misericórdias e hospitais, tal como já haviam feito em Ormuz, Cochim e muitos outros lugares do Oriente, com a protecção e ajuda da Coroa portuguesa. A cidade parecera-lhe toda de cristãos, graças ao importante mosteiro de frades de S. Francisco, à formosa sé com muitos cónegos e a numerosas igrejas.

Consolara-o o pensamento de que nos vastos territórios ainda há pouco descobertos, como as Celebes, as Molucas, a China ou o Japão, a Companhia de Jesus haveria de encontrar terreno fértil para a sua sementeira e colher bons frutos, sem tropeçar a cada passo nos semeadores de outras confissões. Segundo apurara, as gentes da Celebes eram facilmente convertidas à Lei de Cristo, por não terem pagodes, nem templos e a sua única religião consistir em adorar o sol. Ou pela razão mais terrena do interesse que tinham nos tratos com os portugueses, os quais, depois da tomada de Malaca, haviam feito uma povoação em Macassar, lhes tinham ensinado a usar pesos e medidas e a fazer pólvora para combaterem os seus inimigos, entre outras coisas de grande proveito. Provava-o a conversão de dois reis da ilha com muitos dos seus súbditos, conseguida por obra dos irmãos franciscanos e de padres como Vicente Viegas.

Tais informações haviam espevitado o já de si bem ardente zelo missionário de Francisco Xavier, decidindo-o a empreender a viagem de mil léguas, desde Goa até Macassar. Estudara e prepara-se bem para aquela empresa e presentemente ocupava-se em sacar as orações do latim para linguagem que na ilha se pudesse entender, como contava nas cartas para os seus confrades, assegurando-lhes que era cousa mui tra­balhosa não saber a língua.

Por isso mesmo lhe custava tanto sofrer, com humildade e resignação próprias de um sacerdote, aquele revés que o forçava a renunciar ao seu sonho, porque, se fossem verdadeiras as notícias do escândalo que rebentara em Macassar, o futuro da evangelização dos gentios ficaria para sempre comprometido. Ainda não ouvira a explicação do reverendíssimo Chantre (supondo que ele lha daria), porém os mexericos e enredos que corriam à boca cheia por Malaca não agouravam nada de bom.

Segundo conseguira apurar, sem fazer demasiadas perguntas, o padre Vicente Viegas baptizara o rei e a rainha de Supa, com os nomes de D. João Tubinanga e D. Arcângela de Linta, a princesa sua filha, D. Helena Vessiva, com outros membros da família real, assim como muita gente da nobreza e do povo. Fora difícil arranjar padrinhos para tamanha multidão de conversos e D. João de Herédia Aquaviva fora escolhido para apadrinhar el-rei, por ser o mais nobre dos cristãos-velhos ali presentes.

O moço fidalgo pertencia à família de D. Filipe de Herédia, conde de Fuentes, um nobre aragonês que se mantivera fiel ao partido da infanta D. Joana e do rei seu tio, D. Afonso V de Portugal, na luta pelo trono de Castela contra a usurpadora Isabel, a Católica, que saíra vencedora da contenda. D. Filipe, temendo represálias, seguira a despojada Beltraneja e o seu real paladino a Portugal, onde passara a viver com toda a sua família.

Além de fidalgo de boa cepa, D. João de Herédia era um moço valente, bem apessoado e galante, atributos de sobejo para despertar as mais ardentes paixões nas nativas da ilha, a cuja natureza sensual e propensão para a luxúria nem o baptismo purificador lograva pôr freio. A formosa filha d’el-rei de Supa não fora excepção.